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Por Alexia Diniz
Quando o Bolsa Família caiu na conta, Seu Mauro respirou fundo achando que, pelo menos naquele mês, ia conseguir pagar tudo certinho. Só que antes mesmo de levantar da cama o celular vibrou com o alerta do aplicativo de apostas dizendo que tinha “bônus exclusivo esperando”.
Ele pensou que dez reais não fariam falta e que talvez fosse a chance de transformar pouco em muito. Apostou uma vez, perdeu. Apostou de novo tentando recuperar. Quando percebeu, já tinha gastado uma parte boa do benefício sem ganhar nada e o dinheiro que era para o mercado virou saldo negativo e arrependimento.
Enquanto olhava o extrato, ele entendeu o que milhões de famílias estão descobrindo tarde demais. A bet promete mudar o mês, mas o que muda mesmo é o tamanho do buraco no orçamento.
O que está acontecendo com as bets no Bolsa Família?
As bets deixaram de ser apenas um passatempo e viraram um problema nacional entre os brasileiros que vivem com menos. O fenômeno ganhou força porque apostar no celular parece uma forma rápida de conseguir um dinheiro que nunca chega. A promessa de transformar 10 em 100 cria uma sensação de esperança que mexe com quem já está no limite da sobrevivência.
O Tribunal de Contas da União revelou que milhões de pessoas que recebem o Bolsa Família estão colocando parte do benefício nas bets. O número é tão grande que deixa claro que não estamos falando de casos isolados ou exageros de internet. Existe um padrão assustador que mostra como a aposta virou uma saída ilusória que só aprofunda o buraco financeiro dessas famílias.
E o cenário é ainda mais grave porque ao mesmo tempo em que as pessoas apostam com pouco dinheiro, criminosos estão usando CPFs de beneficiários para operações ilegais dentro dessas plataformas, como lavagem de dinheiro, aluguel de CPF e cash-out tendo a conta sendo utilizada como laranja. O resultado é uma mistura explosiva de vulnerabilidade, vício e fraude.
Quanto do Bolsa Família está indo para as bets?
Em janeiro deste ano, as famílias do Bolsa Família transferiram 3,7 bilhões de reais para sites de apostas. Só para entender o tamanho do problema, isso representa 27% de tudo que o governo pagou no mês. Em outras palavras, a cada R$4,00 de benefício distribuído, mais de um acabou nas bets.
O levantamento mostrou que 4,4 milhões de famílias que recebem o Bolsa Família tiveram algum membro apostando naquele mês. Isso significa que mais de um quinto dos lares beneficiados teve contato direto com apostas online. Não é exagero dizer que o celular virou um mini cassino que está sempre aberto, sempre chamando e sempre vencendo.
Esses números revelam uma escolha dura para famílias que já vivem contando moedas. Quando o dinheiro do benefício, que deveria garantir comida e produtos básicos, começa a virar aposta, o impacto se espalha como um efeito dominó. Falta comida, falta gás, falta paz.
Por que tanta gente usa o Bolsa Família para apostar?
A sensação de ganhar rápido é uma armadilha perfeita para quem vive com renda baixa. A cada aposta pequena parece que a vida pode virar em um segundo. O aplicativo cria uma mistura de esperança com adrenalina que faz o usuário acreditar que há uma chance real de mudar de vida. Só que o retorno quase nunca vem.
A promessa do dinheiro fácil é sedutora porque o benefício é pouco e dura menos do que deveria. Muitas famílias recebem 600 ou 700 reais por mês e tentam multiplicar essa quantia com apostas. A conta não fecha porque o dinheiro que já é pouco fica menor ainda. Em vez de virar solução, vira mais um problema.
Ao mesmo tempo, as bets usam estratégias que lembram jogos de cassino. Bônus, luzes, mensagens animadas e estímulos que fazem o usuário querer continuar jogando. A plataforma não deixa ninguém esquecer que existe mais um jogo rolando. Enquanto isso, a geladeira continua vazia e a dívida cresce.
As suspeitas de fraude envolvendo CPFs de beneficiários
O estudo do TCU levantou sinais preocupantes sobre o uso indevido de CPFs de pessoas inscritas no Bolsa Família. As movimentações de algumas contas abastecidas por beneficiários mostram valores completamente incompatíveis com a realidade dessas famílias. Houve casos de transferências de até dois milhões de reais em um único mês.
Quando 889 mil famílias concentram 78% de tudo o que foi apostado pelos beneficiários, algo está errado. O problema não é apenas o vício em si. Existe uma estrutura por trás que usa dados de pessoas pobres para lavar dinheiro e movimentar apostas em larga escala.
Como o beneficiário pode se proteger?
Esse cenário exige um alerta direto para quem recebe auxílio. A primeira proteção é cuidar do próprio CPF como se fosse dinheiro, porque hoje ele vale dinheiro para esquemas ilegais. Monitorar extratos, desconfiar de movimentações estranhas e nunca emprestar dados pessoais é o básico, mas já não é suficiente.
Ferramentas institucionais começam a surgir para ajudar. O BC Protege+, do Banco Central, permite bloquear a criação de contas sem liberação dentro do site do Bacen. Não impede crimes por si só, mas cria trilhas formais que podem proteger o beneficiário em investigações futuras.
Além disso, o governo anunciou o lançamento de uma plataforma nacional que permitirá bloquear o CPF em aplicativos de apostas. Isso impede que o nome da pessoa seja usado para abrir contas em casas de aposta, mesmo que alguém tenha acesso aos seus dados. É uma barreira importante contra o uso fraudulento de CPFs de beneficiários.
Há ainda um ponto sensível, mas necessário. Em famílias onde existe vício em apostas, essa ferramenta pode funcionar como proteção coletiva. A possibilidade de familiares ajudarem a bloquear o CPF de alguém vulnerável pode evitar que a situação saia do controle, especialmente quando a própria pessoa não reconhece o problema.
Não se trata de vigiar ou punir. Trata-se de proteção. Num sistema em que dados de pessoas pobres estão sendo usados para movimentar milhões, se antecipar virou questão de sobrevivência financeira e jurídica.
Como as bets estão aumentando o endividamento das famílias?
Apesar de alarmantes, esses números não contam a história inteira. Quando o TCU aponta pouco mais de 770 famílias com necessidades básicas comprometidas e cerca de 23 mil em início de endividamento, é preciso ler o dado com lupa. O universo total do Bolsa Família gira em torno de 20 milhões de famílias. Isso significa que os casos identificados representam algo próximo de 0,1% do total.
É improvável que um fenômeno que movimenta bilhões em apostas online afete apenas essa fração mínima da população mais vulnerável do país. O mais plausível é que o levantamento capture apenas os casos extremos e detectáveis, aqueles que já deixaram rastros claros no sistema, como interrupção de gastos essenciais, dívidas formalizadas ou atendimentos de saúde já registrados.
Há um problema clássico de subnotificação. Muitas famílias ainda não aparecem nas estatísticas porque o impacto é recente, porque o endividamento está informal, porque o sofrimento não virou laudo médico ou porque ninguém cruzou os dados certos ainda. O mesmo acontece com os números de atendimentos psiquiátricos associados ao vício em apostas, que também parecem desproporcionais diante do tamanho do problema relatado por assistentes sociais, escolas e serviços de saúde básica.
de brigas e culpas. Quem aposta não fala. Quem sabe que algo está errado tenta ajudar mas não consegue. E as contas continuam chegando.
Se todo mundo perde, por que tantos continuam apostando?
As bets foram projetadas para fazer o usuário continuar jogando mesmo quando está perdendo. A cada quase vitória a plataforma gera uma sensação de que a próxima aposta será a decisiva. A pessoa acredita que está perto de ganhar o que perdeu e mais um pouco. No fim vira uma sequência interminável de derrotas mascaradas por esperanças.
Para quem vive com pouco dinheiro, um ganho pequeno parece grande. Essa falsa sensação de conquista reforça a ideia de que apostar é uma possibilidade real de melhorar a vida. O que ninguém percebe é que a casa sempre calcula as probabilidades para sair no lucro. Ganhar uma vez é possível, mas ganhar sempre é impossível.
O problema fica maior quando influenciadores e times de futebol reforçam a falsa ideia de que apostar é normal e divertido. A pessoa que já está fragilizada acredita que está entrando em uma diversão como qualquer outra. Só que não é diversão quando o dinheiro é o da comida das crianças.
O governo tenta agir mas ainda não consegue controlar a situação
Diante dos números, o Ministério da Fazenda determinou que bets autorizadas devem impedir o cadastro de beneficiários do Bolsa Família e do BPC. A regra deveria ter entrado em vigor no início de 2025, mas as plataformas pediram mais prazo dizendo que não estavam prontas. Enquanto isso, o dinheiro continua entrando e saindo sem controle real.
O cenário é tão grave que até o lançamento da bet da Caixa virou polêmica. O presidente Lula demonstrou incômodo com o andamento do projeto e vetou, então não vai rolar mais. A imagem de uma estatal entrando no mercado enquanto milhões de famílias pobres estão sendo prejudicadas não é exatamente simples de explicar.
Enquanto a regulamentação anda devagar os dados mostram que o problema cresce rápido. A combinação de vulnerabilidade financeira, acesso fácil e propaganda intensa criam um ambiente perfeito para dependência e endividamento.
Como evitar que o benefício vire aposta e destrua o orçamento da família
O primeiro passo é reconhecer que a aposta não é solução. Se a pessoa está usando o benefício para apostar significa que o problema já começou. É fundamental conversar dentro de casa, olhar o extrato, identificar para onde o dinheiro está indo e assumir que existe risco real envolvido.
Se a aposta virou hábito ou fuga emocional é importante buscar apoio. Existem serviços de saúde mental, canais de ajuda e programas que orientam sobre vício em jogos. Quanto mais cedo a pessoa buscar ajuda, maiores são as chances de recuperar o controle. Tentar resolver sozinho quase nunca funciona.
Também é essencial reforçar a educação financeira dentro das famílias. Não é sobre planilha complicada. É sobre entender que o benefício é para garantir o básico e que o básico não espera. A comida do mês não aparece porque a bet prometeu um bônus. Ela aparece porque o dinheiro foi usado para o que é necessário.
Conclusão: o que o beneficiário pode fazer agora para se proteger
As apostas online deixaram de ser apenas entretenimento e passaram a afetar diretamente o orçamento de quem já vive no limite. Para quem recebe o Bolsa Família, cada real importa. Apostar não resolve o aperto do mês e, na maioria das vezes, só aprofunda o problema.
O primeiro passo é conversar dentro de casa. Falar sobre apostas, estabelecer limites e, sempre que possível, não jogar. O discurso de dinheiro fácil não combina com a realidade de quem precisa garantir comida, aluguel e remédio até o fim do mês.
O segundo cuidado é com fraudes e uso indevido do CPF. Proteger seus dados, acompanhar movimentações estranhas e usar ferramentas de bloqueio disponíveis reduz o risco de ter o nome envolvido em dívidas, apostas ou crimes que você nem sabe que existem.
Por fim, é importante não esperar uma solução mágica do governo. Mudanças legais ajudam, mas não resolvem tudo a tempo de salvar o orçamento do mês seguinte. Fazer agora o que está ao seu alcance é a forma mais rápida de reduzir danos, proteger sua renda e evitar problemas maiores no futuro.
A realidade é dura, mas clara. Quanto menos dinheiro você tem, menos pode arriscar. E proteger o pouco que entra hoje é o passo mais importante para não perder ainda mais amanhã.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
