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Por Isabel Gonçalves
A icônica novela Vale Tudo de 1988 ganhou um remake especial e continua dando o que falar. O mistério “quem matou Odete Roitman?” parece ter ganhando um novo contorno após uma pesquisa do Datafolha com os telespectadores.
Para quase metade da galera, Odete Roitman deveria pagar seus pecados perdendo a fortuna e ficando pobre ao invés de levar um tiro misterioso. Essa pergunta sobre o destino da vilã reacendeu uma questão curiosa: o que causa mais medo, a morte ou a pobreza?
O que significa ficar pobre?
Na televisão, a perda de patrimônio costuma vir em cenas icônicas e caricatas: mansões vendidas, roupas de luxo trocadas por figurinos simples, carros importados substituídos por ônibus lotados. É a linguagem visual da queda.
Mas na realidade, “empobrecer” vai muito além do que aparece na tela. É lidar com restrições que comprometem a autonomia, a saúde e até o bem-estar. E infelizmente, os ônibus lotados são bem mais comuns do que só uma cena na reta final da novela. No Brasil, a taxa de pobreza extrema beira os 30% da população.
Em um cenário de desigualdade, em que de um lado temos várias Odetes esbanjando uma vida de luxo, poder e status e do outro, milhões de pessoas invisibilizadas, surge a peniafobia, o medo de ficar pobre.
Mas o que é peniafobia?
Segundo especialistas em psiquiatria, a peniafobia é o medo irracional de ficar pobre. Ela molda comportamentos, escolhas e até a forma como encaramos o próprio valor. Não se trata apenas de economizar exageradamente, mas de sentir que a falta de recursos apaga a identidade social de alguém.
O medo de empobrecer é vivido como uma ameaça constante, muito mais angustiante que a morte, porque é contínuo e corroedor. É por isso que quando o público prefere ver Odete Roitman falida em vez de morta, a escolha revela que, no imaginário coletivo, viver sem dinheiro equivale a viver sem identidade, poder ou dignidade.
Sinais da peniafobia no dia a dia
Se você acha que é uma simples preocupação com a sua estabilidade financeira, está enganado. Esses e outros disturbios como a dismorfia financeira afetam a nossa relação com o dinheiro e, consequentemente, a vida pessoal, profissional e emocional.
Veja alguns sinais que podem parecer inofensivos:
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Guardar dinheiro de forma obsessiva, sem se permitir aproveitar o que conquistou.
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Trabalhar além do limite, mesmo quando isso compromete o bem-estar físico e mental.
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Travar diante da necessidade de investir ou de mudar os rumos profissionais.
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Ter discussões frequentes em casa ou no trabalho por questões financeiras.
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Sentir remorso ao gastar, até quando se trata de itens indispensáveis.
A peniafobia vai além de um simples traço de comportamento, como no caso da Odete, que “odeia os pobres” e despreza tudo que não seja associado à riqueza. É um transtorno real e o tratamento costuma envolver diagnóstico clínico para diferenciar a fobia da ansiedade comum. O fato é que o medo da pobreza existe desde sempre, mas quando vira fobia deixa de proteger e passa a aprisionar.
O símbolo da pobreza no Brasil
Saindo do lado clínico, a pobreza carrega muito mais simbolismo quando nos enxergamos em sociedade. Ser pobre no Brasil não é apenas não ter: é carregar o peso de estigmas. Desde cedo, riqueza e mérito andam de mãos dadas, enquanto a falta de dinheiro é apresentada como falha.
E isso alimenta a sensação de que cair socialmente é mais vergonhoso que perder a própria vida. Isso porque a morte encerra a história de forma abrupta. Já o empobrecimento é vivido no dia a dia. Dívidas acumuladas, contas em atraso e a dificuldade de fechar o mês afetam não só o orçamento, mas também o psicológico.
Como seria Odete Roitman na vida real?
Na ficção, Odete Roitman construiu sua fortuna com uma mistura de inteligência empresarial e práticas questionáveis, incluindo esquemas de corrupção e manipulação de poder. Se existisse fora da novela, seria facilmente associada a empresários que acumulam patrimônio bilionário, mas deixam um rastro de irregularidades.
O Brasil está entre os países mais desiguais do mundo. Segundo estudos recentes, 1% da população concentra mais de 60% de toda a renda nacional, segundo relatório da Oxfam, confederação sem fins lucrativos que conta com 19 organizações e mais de 3000 parceiros que busca soluções para os problemas de pobreza e desigualdade no mundo todo.
Enquanto isso, a maioria dos trabalhadores precisa equilibrar contas básicas mês a mês.
O debate sobre taxação dos super-ricos surge justamente para enfrentar esse desequilíbrio. Propostas como a tributação de grandes fortunas e a revisão de isenções fiscais buscam reduzir a concentração de renda e financiar políticas públicas. Odete Roitman, no fundo, encarna mais do que uma personagem: ela é a metáfora da elite que enriquece às custas de um sistema injusto e que, no Brasil, continua sendo alvo de questionamentos sobre ética, poder e justiça social. Afinal, para subir na vida, Vale Tudo?
Vale tudo e o eterno debate entre ética, dinheiro e poder
Mais do que uma novela, Vale Tudo é uma lente que amplia dilemas éticos e econômicos do país. Quando pergunta se “vale tudo” para enriquecer, aponta para a contradição brasileira: admiramos a riqueza, desconfiamos de quem a conquista rápido demais e condenamos quem cai na pobreza. O remake reforça como o dinheiro continua organizando relações sociais, ditando hierarquias e alimentando ansiedades: o medo de cair é tão forte quanto o desejo de subir.
Enquanto isso, seguimos sendo um país em que enriquecer de forma rápida pode exigir não só talento e esforço, mas também alianças questionáveis. O dinheiro e o poder, nesse contexto, funciona como moeda de troca. Quem o possui consegue moldar regras, escapar de punições e manter privilégios. E é justamente essa engrenagem que faz Vale Tudo continuar atual, porque a pergunta principal ainda não foi respondida.
Conclusão: e se o dinheiro fosse só ferramenta?
A novela mostrou o óbvio: para muitos brasileiros, a pobreza parece castigo pior que a morte. Mas há um caminho alternativo. Apesar do peso simbólico, é possível desenhar outra relação com as finanças.
Em vez de alimentar o pânico da queda, podemos aprender a usar o dinheiro de forma mais equilibrada, sem deixar que ele dite quem somos. Encarar o dinheiro como instrumento de autonomia, e não como medida de valor, é um passo fundamental. Planejamento, cuidado com gastos e investimento responsável podem transformar a peniafobia em consciência financeira: menos medo, mais preparo.
O verdadeiro desafio não é escapar da pobreza a qualquer custo, mas garantir que o dinheiro sirva à vida, e não o contrário.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.