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Por Isabel Gonçalves
Outro dia, abri o aplicativo do banco e fiquei olhando pro saldo como quem encara um espelho mal iluminado: você sabe que tem alguma coisa ali, mas não consegue confiar no reflexo. Ao mesmo tempo, rolava o Instagram e via conhecidos em viagens caríssimas, restaurantes da moda, comprando coisas que, teoricamente, no dia a dia, não cabem no bolso de ninguém.
Foi aí que me deparei com a expressão “dismorfia financeira” e pensei: talvez o problema não seja só meu, mas de toda uma geração que aprendeu a se medir pelo que os outros aparentam ter.
Mas o que é essa tal de dismorfia financeira?
O conceito nasceu em um artigo do The New York Times e já virou diagnóstico da geração das parcelas infinitas. Mas a verdade é que tem muito millennial (nascidos entre o início da década de 1980 e o meio dos anos 90) sofrendo disso também. A lógica é simples: assim como a dismorfia corporal faz você enxergar seu corpo de forma distorcida, a dismorfia financeira cria uma visão equivocada do próprio bolso.
No dia a dia, isso se manifesta tanto em quem estoura o cartão achando que está tranquilo, quanto em quem vive com sobra, mas sente que nunca é suficiente. É o vício da comparação que sabota silenciosamente o bem-estar.
O digital acabou com o dinheiro?
Tentando achar uma fonte do problema, podemos refletir sobre como o dinheiro “deixou de existir”. Isso porque antes era nota na mão, agora é só um tap no celular. Não dá nem tempo de sentir que saiu e aí gastar virou tão automático que se confunde com deslizar tela. Aproxima, confirma, foi.
E aí se a gente não vê o dinheiro, fica mais difícil dimensionar o quanto ele realmente vale. O dinheiro virou número na tela, tal qual a quantidade de curtidas de um post. E nesse fluxo digital, saldo bancário virou métrica de engajamento, você olha, torce, mas raramente entende o que está acontecendo de verdade.
E o resultado disso? Alta inadimplência, com cerca de 51% dos jovens entre 25 e 29 anos com pagamentos atrasados, estresse e ansiedade sendo geradas pelas finanças mal administradas e a eterna sensação de que não temos controle sobre o próprio dinheiro.
Comparações que corroem o dia a dia
A gente pode até achar que a solução disso tudo está em planilhas de orçamento pessoal e aprender sobre investimentos. Mas antes de tudo é preciso entender que hoje em dia, pra falar de educação financeira, também precisamos falar sobre hábitos de consumo e comportamento. E aí entra uma palavra importante: comparação.
Não é só sobre ver a vida perfeita dos outros nas redes. É sobre tentar imitar isso com o crédito liberado, anúncios segmentados e o consumo incentivado 24 horas por dia. A régua invisível da comparação se instala no cotidiano: o restaurante escolhido, a roupa do rolê, a viagem do feriado. Sempre existe alguém, no feed ou na mesa ao lado, que parece estar dez passos à frente.
Mas se você parar pra ver mesmo, do outro lado da tela tem alguém que mal mal consegue um emprego estável, que parcelou a viagem em 12 vezes, que pediu o prato mais barato do cardápio só pra postar a foto com taça de vinho. O problema é que a gente não enxerga a dívida no story nem o boleto no close friends. Vemos só a performance.
Será que você tem dismorfia financeira?
Em tempos de dinheiro digital, educação financeira deixa de ser só um cálculo e passa a ser também um exercício de autoconhecimento. Então, pare e pense porque a dismorfia financeira se revela em pequenos detalhes.
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Abrir o aplicativo do banco e sentir a mesma tensão de abrir mensagem do ex.
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Recusar convites porque o ambiente parece “fora do seu nível”.
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Fechar o Instagram com a impressão de estar atrasado na vida, menos viajado, menos rico, menos tudo.
É preciso entender que não é só sobre gastar, é sobre identidade e pertencimento. No dia a dia, significa acreditar que seu valor pessoal está atrelado ao saldo bancário.
Como fugir disso?
Antes de qualquer planilha ou cálculo, é fundamental reconhecer a própria situação e identificar padrões de comportamento que prejudicam sua relação com o dinheiro. Muitas vezes, a questão vai além dos números: está ligada às emoções.
Comprar para aliviar a tristeza ou se recompensar após um dia difícil pode parecer inofensivo, mas são sinais de alerta que revelam gatilhos mentais capazes de comprometer o orçamento.
Educação financeira, investimentos e planejamento não eliminam as tentações, mas permitem encará-las de frente, sem se deixar levar cegamente pelo impulso. E, quando o peso parecer grande demais, buscar ajuda profissional pode ser o passo mais inteligente, seja um planejador financeiro ou um psicólogo.
Conclusão: dinheiro não é régua, é ferramenta
A dismorfia financeira é um reflexo distorcido que atravessa nossa rotina. Não se trata apenas de boletos ou dívidas, mas da forma como medimos a própria vida pelo extrato do outro.
E sim, falar de dinheiro ainda é tabu. Fingimos controlar enquanto a ansiedade cresce. Por isso, a única saída é repensar hábitos, cuidar do emocional e olhar para o dia a dia com menos punição e mais equilíbrio.
No fim, não existe fórmula pronta ou comparação justa, cada trajetória financeira é única. O que faz sentido é transformar o dinheiro em ferramenta de bem-estar, e não em um medidor de valor pessoal. Afinal, ter saúde financeira não é sobre parecer rico, mas sobre viver com mais liberdade, consciência e paz no presente.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.