
Mais lidas
compartilhe
SIGA NO

Preciso confessar. Esse texto que escrevo está atrasado. Quando prometi que o escreveria, havia acabado de me mudar de país e estava animada com tudo o que viria pela frente. Fiz uma avaliação mental da minha disponibilidade de agenda, do comprometimento necessário e aceitei o desafio. É claro que a análise do passado é sempre mais fácil do que garantir que o aprendizado será aplicado com maestria no futuro. Mas quero registrar um dos grandes culpados pelo meu atraso: a subestimação de quanto nosso cérebro roda no automático.
Sistema 1 vs Sistema 2: como seu cérebro funciona quando muda de país
O primeiro culpado é explicado por Daniel Kahneman em sua obra Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar. Kahneman distingue dois sistemas, um deles opera de forma automática, intuitiva e rápida, o outro opera de forma intencional, exige esforço e é mais devagar. O primeiro (sistema 1) é responsável, por exemplo, por distinguir um sorriso de uma carranca. O segundo (sistema 2) é responsável por calcular os rendimentos de um investimento de R$3.250 a uma taxa de 12% ao ano (juros simples). A primeira tarefa é trivial e imediata, a segunda exige uma certa atenção, talvez papel e caneta, e quase certamente mais do que 2 ou 3 segundos.
Quando tudo vira esforço: o colapso da banda cognitiva
Minha mudança para a Europa veio com uma alteração de composição do mix de atividades que pertenciam ao meu sistema 1 e ao meu sistema 2. Eu sabia que a mudança viria acompanhada de desafios e que a adaptação seria difícil, mas reconheço que subestimei a dimensão dessa fase de adaptação.
A exaustão invisível: quando tudo exige esforço consciente
Nos meus primeiros dias de trabalho, chegava em casa completamente esgotada. E tal esgotamento seria fácil de explicar se eu já tivesse chegado com 10 projetos diferentes em minha mesa, ou com muitas tarefas a serem executadas. Não, meu esgotamento se explicava por coisas triviais como participar de conversas com meus novos colegas, de entender as regras tácitas de convívio em uma nova empresa, de assimilar a cultura e os valores não explícitos do meu novo habitat. A energia que eu gastava para entender as palavras em português no meu antigo ambiente de trabalho provavelmente consumia algo como 2 ATPs por hora. Em meu novo mundo, a simples tarefa de compreender o inglês com sotaques dos mais diversos consumia o equivalente aos ATPs necessários para se completar uma maratona.
Nova cultura, nova linguagem, nova forma de se expressar
Some-se a isso a dificuldade de adaptar a minha própria forma de comunicação com o mundo externo. Aquela habilidade de me expressar de uma forma informal e simples para colegas que já me conheciam há tempos e que entendiam minhas piadas, minhas broncas, meu tom, meu desabafo, meu elogio, se tornaram inúteis nesse ambiente novo. A esses dois desafios, junta-se a nova cultura organizacional. Que coisa complexa essa de cultura organizacional!
O impacto de perder o automático e o custo cognitivo disso
Pronto, muitas das atividades que antes eram executadas pelo meu sistema 1, aquele que faz as coisas intuitivamente, de forma rápida, com pouco gasto energético, foram completamente transferidas ao meu sistema 2.
Decisões exigem banda e ela é limitada
O grande problema é que, contrário ao que alguns filmes de Hollywood nos fazem acreditar, nosso sistema 2 tem uma banda limitada. Pense nessa banda como o encanamento de uma residência: aumentar a quantidade de água de um lado esperando que o fluxo de água do outro aumente também só vai funcionar até um determinado limite. Depois de atingido esse limite, o encanamento vai restringir esse fluxo e um aumento desordenado, além de não alcançar o objetivo, pode causar até mais dano.
Nosso sistema 2 lida com atividades de diversas naturezas. Além de nos ajudar a fazer cálculos, ou de nos fazer prestar atenção em textos como este que escrevo (atividades pensantes), também é o sistema responsável pelas nossas funções executivas. Ou seja, esse é o sistema que dá suporte a decisões, é o sistema que faz escolhas deliberadas, dessas que exigem algum nível de raciocínio. O sistema 2 é quem nos ajuda a escolher um prato no cardápio de um restaurante que estamos visitando pela primeira vez, ou que nos ajuda a decidir se uma roupa é adequada para um determinado evento social ou profissional. E também é esse o sistema que nos ajuda a decidir as palavras que vamos usar ao pedir um aumento, ou como vamos nos defender de uma acusação potencialmente injusta feita por um colega sem-noção. Se há algo camaleão no ser humano, esse tem de ser nosso sistema 2!
O sistema 2 está sobrecarregado? Você precisa de um guia de decisões
John Tierney, em um artigo famoso no New York Times, descreve como juízes israelenses responsáveis por decidir a liberdade condicional de sentenciados são provas vivas de que somos vítimas desse limite superior de nossa banda executiva. Depois de analisar mais de 1.100 casos, os estudiosos mostraram que o simples fato de um caso ser julgado na parte da manhã se tornara o fator decisivo entre obter ou não obter a liberdade condicional. Mais de 70% dos casos julgados no início da manhã obtiveram a decisão favorável, enquanto apenas 10% no final do dia havia sido agraciado com a mesma decisão.
Por que Jobs e Zuckerberg vestem sempre o mesmo?
O que esse caso sugere é que nossa capacidade decisória pode ir decaindo ao longo do dia, e quanto mais banda vamos consumindo, menos vai sobrando. Tal efeito é conhecido como "fadiga da decisão" e, dizem as más línguas — também conhecido como Wikipedia — é o motivo pelo qual Steve Jobs, Mark Zuckerberg, e Barack Obama sempre se vestem da mesma forma. Afinal de contas, isso diminui a necessidade de tomar pelo menos uma decisão por dia.
Bandas mentais são individuais — mas os efeitos colaterais são coletivos
Um ponto importante é que o tamanho da banda e o quanto cada decisão consome da banda é algo extremamente individual. Da mesma forma que alguns nascem mais baixos e outros mais altos, e que nem todos nascemos com a voz da Taylor Swift, bandas e consumo de banda também são individuais.
Mais pressão financeira, menos capacidade de decisão
Ainda não existe uma tabela que avalie a quantidade de kps (kilo pensamentos por segundo) que cada cérebro é capaz de processar. Mas apesar de não haver uma tabela com valores absolutos, já há evidência de que fatores ambientais pesam. Os autores Anuj Shah, Sendhil Mullainathan e Eldar Shafir mostraram que decisões que envolvem valores monetários altos em relação ao poder aquisitivo de um indivíduo afetam a capacidade de tomar decisão de uma forma negativa. Nesse estudo, ser exposto a uma decisão que poderia gerar um choque no orçamento familiar diminuiu a capacidade de tomar decisões supostamente mais saudáveis (financeiramente). Isso pode inclusive explicar por que pessoas mais pobres se sobreendividam, por exemplo.
Um guia de decisões pode ser o antídoto (e seu bolso agradece)
Mas, tenha calma, leitor ou leitora, não só de desespero vivemos. Um outro estudo, de autoria de Priya V. Shanmugam, traz um exemplo de como algo tão simples como um guia de decisão pode diminuir o impacto da fadiga de decisões. Médicos que trabalham em atendimento de emergência são expostos a uma série de decisões (sérias) no decorrer de um dia (por vezes longuíssimos) de trabalho. O que esse estudo revela é que a existência de uma política clara diminui drasticamente a chance de que médicos tomem decisões erradas, mesmo quando estão cansados.
Menos decisões, menos erro: a lógica por trás
Ou seja, ter uma referência externa que te ajude a tomar decisões diminui a banda necessária para a tomada de decisão.
O seu prospecto pessoal: regras claras contra erros recorrentes
Traduzindo todos esses estudos na prática, para uma vida financeira saudável, ter regras claras que guiem nossas decisões é fundamental. Um guia de decisões funciona como um prospecto de um fundo de investimento: ele deve ser feito com calma, em um momento em que bandas cognitivas estejam repletas e descansadas, e deve deixar claros os princípios que temos para como pretendemos consumir o dinheiro.
Ter um orçamento detalhado é um ótimo começo e pode ser suficiente para uma boa parte das pessoas. Mas caso você já tenha se arrependido de decisões financeiras no passado, por exemplo, de ter gasto mais do que deveria em um par de tênis desnecessário em um momento de empolgação, ou de ter colocado uma porção maior do que deveria em Bitcoin no momento errado, talvez um prospecto pessoal seja uma boa ideia.
Meu erro pessoal com a taxa de câmbio
O exemplo mais atual que tenho para incluir em meu prospecto é meu otimismo com a taxa de câmbio. Depois de mais de um ano, já tenho noção do valor das moedas. Mas sempre sou otimista e fico esperando que a taxa melhore uns 5 centavos a mais para converter euros em reais para fazer jus às minhas obrigações no Brasil. E não foram raras as vezes em que essa espera de 5 centavos a mais me levaram a uma perda de 20 centavos a menos. Essa é uma das regras que fazem parte do meu prospecto e que preciso levar em consideração em minhas decisões futuras: não posso esperar pela taxa ótima de conversão, uma subótima de 5 centavos a menos está de ótimo tamanho! E pra garantir que esse prospecto seja levado mais a sério, deixei isso registrado aqui, para que pelo menos meu marido fique de testemunha.
Conclusão: lições de banda esgotada, mudança de país e finanças
E finalmente, concluo. Muito depois do que gostaria originalmente, na esperança que o editor me perdoe pela demora. Apelo para seu senso de humanidade pelo que passei. De uma hora para a outra, vi-me com um estrangulamento da minha banda pensante, com uma capacidade cognitiva diminuída, tendendo ao zero por meses a fio. Talvez isso fique inclusive de lição para seu prospecto como editor: "nunca convide um autor que está mudando de país". Fica a dica.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.