A Lei Magnitsky e a sanção a Moraes: discurso x realidade geopolítica
Sanção ao ministro do STF expõe as contradições da política externa dos EUA e acende o debate sobre soberania judicial
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Por Vinícius Ayala*
A sanção imposta pelo governo dos Estados Unidos ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), sob a alegação de violações de direitos humanos, reacendeu um debate fundamental sobre a instrumentalização de mecanismos internacionais de proteção para fins políticos.
A Lei Magnitsky, criada em 2012 como resposta à morte do advogado russo Sergei Magnitsky – torturado após denunciar um esquema de corrupção estatal na Rússia –, transformou-se, com o tempo, em uma ferramenta de pressão geopolítica, aplicada de forma seletiva contra adversários dos interesses americanos. A inclusão de Moraes na lista de sancionados não apenas expõe as contradições da política externa dos EUA, mas também levanta questões profundas sobre soberania judicial, duplo padrão na defesa da democracia e os limites da ingerência estrangeira em nações soberanas.
O caso Magnitsky original representava um esforço legítimo de responsabilização por violações graves de direitos humanos. No entanto, sua expansão em 2016, com a Global Magnitsky Act, permitiu que os EUA assumissem um papel de juiz global, impondo sanções unilaterais sem necessidade de condenação prévia em instâncias internacionais ou nos países afetados. Essa flexibilidade jurídica, embora justificada como mecanismo de proteção aos direitos fundamentais, abre espaço para arbitrariedades. A seleção de alvos segue uma lógica geopolítica clara: enquanto violações sistemáticas em países aliados, como Arábia Saudita e Israel, são ignoradas, figuras de nações não alinhadas aos interesses americanos são frequentemente sancionadas sob alegações que, muitas vezes, carecem de transparência.
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No caso do ministro Alexandre de Moraes, as acusações de "prisões arbitrárias" e "censura" soam particularmente hipócritas quando confrontadas com a realidade jurídica brasileira e as próprias práticas dos EUA. As decisões de Moraes no combate à desinformação e aos ataques às instituições democráticas foram tomadas no âmbito de processos legais, com fundamento na legislação nacional e, em muitos casos, com aval do plenário do STF. Ao mesmo tempo, os EUA, que sancionam o ministro brasileiro por supostamente restringir liberdades, mantêm legislações como a Section 230, que permite a remoção de conteúdo digital sem ordem judicial, e o Cloud Act, que autoriza o acesso a dados de usuários de redes sociais sem consulta a outros países. Essa dissonância revela um duplo padrão que mina a credibilidade da sanção.
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Além disso, o timing da medida suscita suspeitas de motivações políticas extrajudiciais. A sanção a Moraes coincidiu com momentos delicados na política externa brasileira, como a posição independente do país no Conselho de Segurança da ONU em relação aos conflitos em Gaza e a recusa em aderir a sanções contra a Rússia. Não é a primeira vez que a Lei Magnitsky é acionada em contextos de divergência estratégica: em 2020, o procurador-geral da Venezuela, Tarek William Saab, foi sancionado dias após denunciar esquemas de corrupção envolvendo empresas americanas. A seletividade na aplicação da lei transforma o discurso de defesa dos direitos humanos em um instrumento de coerção diplomática.
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O impacto dessa sanção, porém, pode ser o oposto do pretendido. Em vez de isolar Moraes, a medida galvanizou apoio interno, com setores que antes criticavam suas decisões agora defendendo a soberania nacional contra o que veem como uma interferência indevida. Pesquisas de opinião mostraram um aumento na percepção positiva do ministro após a sanção, evidenciando o efeito bumerangue de ações unilaterais sem legitimidade multilateral. A história recente demonstra que sanções sem base consensual frequentemente fortalecem as lideranças visadas, como ocorreu com Nicolás Maduro, cujo governo se consolidou internamente após uma série de medidas punitivas dos EUA.
A Necessidade de Mecanismos Multilaterais
O caso Moraes expõe uma contradição central no sistema internacional de proteção aos direitos humanos: a falta de mecanismos imparciais e multilaterais para responsabilização. Enquanto as grandes potências agem como juízes e partes, aplicando sanções conforme seus interesses, a credibilidade das leis internacionais é corroída. O Brasil, como nação soberana, deveria responder a essa afronta não apenas com protestos diplomáticos, mas com a aceleração de projetos como a proposta de uma "Lei Magnitsky brasileira", em tramitação no Senado, que permitiria ao país sancionar violadores de direitos humanos de forma independente e transparente.
Conclusão
A defesa da democracia e dos direitos humanos não pode ser monopólio de uma única potência, sob risco de se transformar em mera justificativa para intervencionismo. O verdadeiro compromisso com esses valores exige instituições internacionais fortalecidas, critérios transparentes e, acima de tudo, o respeito à autonomia das nações. A sanção a Alexandre de Moraes, longe de ser um ato de justiça, é mais um capítulo na politização de instrumentos que deveriam servir à proteção universal da dignidade humana – e não aos jogos de poder entre Estados. A comunidade internacional deve refletir sobre a necessidade de criar mecanismos que verdadeiramente promovam a justiça e os direitos humanos, sem se deixar capturar pelos interesses geopolíticos de uma única nação.
*Vinícius Ayala é advogado, mestre, doutorando e professor universitário
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.