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O legado jurídico de Papa Francisco: harmonizando fé e Justiça Social
A passagem do Papa Francisco pelo pontificado trouxe reflexos importantes nos debates jurídicos e morais
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23/04/2025 06:00
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*Por Vinícius Ayala
A passagem do Papa Francisco pela liderança da Igreja Católica, até seu falecimento em 21 de abril de 2025, foi um verdadeiro marco não apenas para os católicos, mas para a sociedade global. Seu pontificado, marcado por uma abordagem que conjugava a fé com uma sensibilidade aguçada para as questões sociais e bioéticas, deixou um rastro de transformação nos debates jurídicos e morais que permeiam a nossa era.
A Bioética como ponte para o futuro
Francisco, com sua visão inclusiva e seu compromisso com a dignidade humana, entendeu a bioética como uma ponte essencial para dialogar com os avanços científicos e tecnológicos. A nomeação de Rui Nunes, um expoente na discussão sobre testamentos vitais, para a Academia Pontifícia de Bioética, exemplifica essa estratégia. Nunes, conhecido por seu trabalho na Associação Portuguesa de Bioética, trouxe para o Vaticano uma expertise crucial na análise de dilemas como a manipulação genética e os cuidados no fim da vida, sempre alinhados com a moral cristã.
O Papa Francisco, em suas reflexões, como aquelas compartilhadas no livro "Sobre o Céu e a Terra", coescrito com o rabino Abraham Skorka, abordou temas espinhosos com uma clareza e uma humanidade raramente vistas. Ele reafirmou a posição da Igreja contra a eutanásia ativa, mas abriu espaço para discussões sobre a ortotanásia, que respeita o curso natural da vida em casos de doenças terminais. Francisco também manteve a defesa intransigente do direito à vida desde a concepção, rejeitando o aborto, mas reconheceu a necessidade de acolhimento e perdão para aqueles que enfrentaram essa dolorosa realidade.
Essa postura equilibrada gerou um impacto significativo no campo jurídico, incentivando a criação de normas que reflitam um respeito mais profundo pela vida e pela dignidade humana, mesmo quando confrontadas com as complexidades da biotecnologia moderna.
Juízes como agentes de Justiça Social
Papa Francisco foi além ao convocar juízes das Américas para um encontro no Vaticano, em junho de 2019, com o objetivo de refletir sobre os direitos sociais. Ele via os magistrados como agentes cruciais para a promoção de uma justiça social que não se desvia dos princípios cristãos. Durante o encontro, a metodologia "ver, julgar e agir" foi adotada, permitindo uma troca rica de experiências e uma análise crítica do estado dos direitos sociais na região.
O Papa destacou a importância de os operadores do direito conhecerem a realidade das populações que servem, especialmente os mais vulneráveis. Ele criticava a naturalização da injustiça social, muitas vezes justificada por argumentos econômicos ou pela interpretação flexível dos direitos sociais como não imperativos. Francisco alertou para o risco do lawfare, a instrumentalização do direito para desestabilizar processos políticos, enfatizando a necessidade de uma prática judicial ética e comprometida com o bem comum.
A criação do "Comitê Permanente Panamericano de Juízes e Juízas para os Direitos Sociais" foi um desdobramento concreto dessa visão, com a participação de uma juíza brasileira, Ana Inês Algorta Latorre, entre outros sete nomeados. Este comitê simboliza a luta pela efetivação dos direitos sociais, um desafio que Francisco via como essencial para a construção de uma democracia real e para a redução das desigualdades.
Inclusão e Misericórdia: A nova face da Pastoral
No que tange às questões de gênero e família, Francisco introduziu nuances importantes na pastoral da Igreja. A autorização para que padres abençoassem uniões homoafetivas, sem alterar a definição doutrinária de casamento, foi um gesto simbólico de inclusão. O Papa insistia que a Igreja deveria acolher a todos com caridade pastoral, reconhecendo a diversidade de situações familiares e humanas sem, contudo, endossar mudanças na doutrina oficial.
Da mesma forma, sua decisão de permitir a absolvição das mulheres que abortaram, durante o Ano Santo, foi um ato de misericórdia que ressoou amplamente. Francisco não cedeu na defesa da vida, mas ofereceu uma face mais compassiva da Igreja, reforçando-a como um refúgio para os arrependidos e um espaço de cura para os feridos pela vida.
Reflexões para o futuro
O legado de Papa Francisco é um convite à contínua reflexão sobre como as instituições podem se adaptar para responder às demandas éticas e jurídicas de um mundo em rápida evolução. Ele nos deixou com a tarefa de equilibrar a preservação dos valores centenários com a necessidade urgente de justiça e inclusão.
A Igreja sob sua liderança não se afastou de suas raízes, mas estendeu suas mãos para dialogar com a ciência, a tecnologia e as novas configurações sociais. Francisco soube como ninguém encarnar a figura de um pastor que olha para o futuro sem perder a essência do evangelho.
Como escreverá a história, Francisco foi um pontífice que entendeu a justiça não apenas como um conceito abstrato, mas como uma prática cotidiana que deve beneficiar especialmente os mais desfavorecidos. Seu exemplo ecoará por gerações, inspirando tanto religiosos quanto juristas a buscarem um equilíbrio entre tradição e progresso, entre doutrina e misericórdia.
*Vinícius Ayala é advogado e professor universitário.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.