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Carnaval 2025: palco de intolerância religiosa

Os temas explorados pelas escolas de samba em torno da religiosidade de matriz africana, repercutiram nas redes sociais

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Por Tamara Santos*

O carnaval na Marquês de Sapucaí é um acontecimento! O Rio de Janeiro para, assim como o Brasil, na expectativa de conferir as escolas de samba do grupo especial na avenida com os seus sambas-enredos, baterias, alegorias, fantasias e, claro, com muito samba no pé.

Mas, este ano a comoção foi diferente, porque os desfiles, em sua maioria, abordaram as Religiões de Matriz Africana, causando um burburinho nas redes sociais. Para se ter uma ideia, a Unidos do Viradouro apresentou o samba enredo “Malunguinho: O Mensageiro de Três Mundos”, ao contar a história da entidade afro-indígena que se manifesta como Caboclo, Mestre e Exu/Trunqueiro.

A Unidos da Tijuca apresentou o enredo “Logun-Edé: Santo Menino Que Velho Respeita”, que contou a história do orixá filho de Oxum e Oxóssi, representado pelas mesmas cores que a escola: amarelo e azul.

A Beija-Flor de Nilópolis, vencedora do carnaval, homenageou Laíla, um de seus baluartes com “Laíla de todos os santos, Laíla de todos os Sambas”, buscando a religiosidade e a fé em Xangô, além de se despedir de Neguinho da Beija-Flor, que cantou o seu último samba-enredo pela escola.

Já a Salgueiro entrou na avenida com o corpo fechado, explorando a relação humana e a busca por proteção espiritual. Por outro lado, a Unidos de Vila Isabel, apresentou o Diabo em sua comissão de frente, interpretado pelo ator José Loreto, com o samba enredo “Quanto mais eu rezo, mais assombração aparece”.

Mas, por que isso é relevante? Por que isso incomoda?

O termo macumba é jogado de forma pejorativa para atacar essas manifestações religiosas. Mas essa autora faz questão de explicar, para aqueles que usam o termo de forma indevida, que a macumba tão citada nada mais é do que um instrumento africano que promove o batuque, batuque esse carregado de ancestralidade.

As Religiões de Matriz Africana, como o Candomblé e a Umbanda, têm a sua origem desde a chegada e instalação dos portugueses no Brasil. A população negra já desembarcava no Brasil despossuída de qualquer direito. Os navios negreiros traziam populações de diversas etnias, nações, povos, não se compondo numa identidade única. Os africanos eram misturados para chegarem à Colônia em estado de grande alienação e viverem aqui em estado de subjugação permanente.

Suas raízes religiosas eram mitigadas. A cristandade medieval obrigava os africanos aqui escravizados a cumprirem as obrigações oficiais do culto, que era uma forma de controle público da fé e de desconstruir suas referências culturais. Mas, mesmo diante da diversidade imposta, eles conseguiram manter muitos costumes, tradições e ritos religiosos. Isto é, os escravizados sempre resistiram com garra e força a todas as imposições do Estado/Igreja, por meio do sincretismo religioso.

Pois bem, como é possível que em 2025 ainda seja necessário buscar recursos para justificar a manifestação da fé? Como é possível as pessoas atacarem uma representatividade de fé que sequer conhecem?

Presenciamos rotineiramente a tristeza, a dor, a decepção de um povo que foi arrancando de sua cultura, que não pode cultuar a sua religião, e vê o seu terreiro destruído, sem compreender o motivo de tamanho ódio!


O que diz a Lei

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A Constituição de 1988, também chamada de Constituição Cidadã, promoveu em seu artigo 5º a consolidação de alguns diretos fundamentais para a vida. E mais, esse dispositivo estabelece os direitos que devem ser tomados como princípios gerais (liberdade, vida, igualdade etc.) para o entendimento da norma constitucional e infraconstitucional. Embora o seu preâmbulo mencione Deus, o artigo 5º, em seus incisos VI a VIII, assegura a liberdade religiosa.

É isso mesmo que você leu... a liberdade religiosa é direito fundamental do indivíduo. Temos aqui o reconhecimento normativo e constitucional da liberdade religiosa, sendo certo que ela representa um grande avanço que consolida direitos fundamentais.

Nesse giro, um ponto que merece destaque é que a Constituição da República de 1988, nos artigos 215 e 216, reconhece as manifestações afro-brasileiras pelo Estado. Tais artigos foram incluídos pela Emenda Constitucional n°. 48/2005, sob a justificativa de que a cultura não só é elemento definidor da identidade nacional, mas também vetor indispensável ao desenvolvimento socioeconômico do país.

Ainda com o objetivo de combater a discriminação racial e as desigualdades raciais que atingem os afrodescendentes, em 2010 foi promulgada a Lei nº. 12.288, o Estatuto da Igualdade Racial. Entre outros objetivos, esse Estatuto adota como diretriz político-jurídica “a inclusão das vítimas de desigualdade étnico-racial, a valorização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira” (art. 3º).

Já no que se referente à intolerância religiosa, o referido Estatuto ( Lei 12.288) prevê que:

Art. 26. O poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de:
I - coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas;
II - Inventariar, restaurar e proteger os documentos, obras e outros bens de valor artístico e cultural, os monumentos, mananciais, flora e sítios arqueológicos vinculados às religiões de matrizes africanas;
III - assegurar a participação proporcional de representantes das religiões de matrizes africanas, ao lado da representação das demais religiões, em comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas ao poder público.

Percebe-se que a Constituição e as legislações infraconstitucionais vêm se esforçando para promover o combate da intolerância religiosa, embora saibamos que tais medidas ainda não asseguram a liberdade aos praticantes das religiões de Matriz Africana, pois seus adeptos vivenciam diariamente a intolerância e violência.

E é justamente isso que torna essencial a necessidade de compreensão da formação desse povo. Povo que sangrou, não apenas pelo trabalho escravo ou pelos açoites, mas principalmente pelo descaso e displicência de suas tradições religiosas e devoções.

A aversão está enraizada em nossa cultura desde o início. A escravidão é o berço do filho feio que cresceu, virou um monstro, denominado racismo, que vem permeando sorrateiramente o coração das pessoas e instalando o ódio por raça, cor da pele, etnia e religião.

A intolerância religiosa é alimentada tanto pelo racismo, quanto pela falta de conhecimento da população acerca das práticas mediúnicas e anímicas desenvolvidas pelas religiões de Matriz Africana.

Nessa perspectiva, e coadunando com a Carta Magna, a legislação infraconstitucional estabelece a responsabilização pelos atos de xenofobia por meio da Lei de nº. Lei 7716/89, que é exatamente essa intolerância ligada ao preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Traduzindo, são os crimes de racismo.

A intolerância religiosa

Com efeito, é impossível discutir a questão da intolerância religiosa sem mencionar os crimes de racismo, vez que este está intimamente ligado à aversão religiosa aos cultos de matriz africana. A cor da pele foi e é motivo para distinção, as vezes de forma velada, outras de maneira explícita.

São constantes as notícias de destruição de templos e objetos sagrados de centros e terreiros como se fossem a representação do mal. Nesse sentido, além da aplicação dos crimes envolvendo a xenofobia e a injuria racial, temos ainda os crimes contra o sentimento religioso, previsto no art. 208, do Código Penal.

Mas por que a cor da pele importa tanto? Ou melhor, por que a cor da pele preta afronta tanto? Vale destacar que o Código Penal, por sua vez, sofreu alteração em seu texto para em seu artigo 140, §3º, coibir a injuria racial.

Importante elucidar, apenas para fim de curiosidade, que embora a injuria racial e a lei de xenofobia sejam instrumentos de represália contra as atitudes racistas, elas têm conotações diferentes. Enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime de racismo ou xenofobia atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. Desta forma, ao contrário da injúria racial, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível, conforme determina o artigo 5º da Constituição Federal.

Extirpar a intolerância religiosa no Brasil e no mundo é uma tarefa muito difícil, mas é preciso manter o diálogo inter-religioso na sociedade como um todo, uma vez que o principal sentimento que move essa situação é o medo, justificado pela ignorância. Não conhecer as diversas tradições religiosas é uma das causas geradoras de revolta com relação às crenças diferenciadas.

Contudo, é com tristeza no coração que essa autora afirma que esses instrumentos legais são insuficientes para coibir as práticas racistas e de intolerância religiosa. As penas aplicadas a esses crimes são brandas, cumpridas em regime aberto, em uma eventual condenação.

A verdade é que o racismo está ligado a uma questão cultural, cravado em nossa história. E como cantava Elza Soares: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.

O Brasil é um país de diversidade, de múltiplas culturas, raças e etnias. Essa miscigenação também se aplica às denominações religiosas aqui existentes, imperando o sincretismo. Assim, o Brasil deveria ser o primeiro país do mundo a sustentar atitudes antirracistas, fazendo valer o preâmbulo de nossa Lei Maior, a Constituição: “Todos são iguais perante a lei”. É inconcebível a necessidade de leis infraconstitucionais para fazer valer algo que deveria ser tão natural.

*Tamara Santos é advogada especialista em Direito Penal, entre outros

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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