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Reforma do Código Civil: atualizar a lei ou deixar o passado ditar o futuro

Como uma lei criada em 2002 pode lidar com questões como herança de criptomoedas, divórcio em famílias reconstituídas, inteligência artificial, entre outras?

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Por Vinícius Ayala

 

Você já parou para pensar como uma lei criada em 2002 pode lidar com questões como herança de criptomoedas, divórcio em famílias reconstituídas ou responsabilidade por acidentes causados por inteligência artificial?

O Código Civil brasileiro, em vigor desde 2002, é como um manual escrito para um mundo que não existe mais. Enquanto a sociedade avança em ritmo acelerado — com novas tecnologias, relações familiares plurais e economias digitais —, a legislação civil permanece presa a conceitos obsoletos. A Reforma do Código Civil, proposta no Senado Federal como PL 4/2025, busca corrigir essa dissonância. Mas será que uma reforma ambiciosa como essa consegue equilibrar a necessidade de modernidade com a segurança jurídica que o direito exige?

 

 

O que está em jogo na reforma do Código Civil?

 

A proposta de reforma não se limita a ajustes técnicos; trata-se de uma revisão estrutural que busca responder a perguntas que nem existiam há 20 anos. Imagine, por exemplo, definir quem herda um perfil de Instagram com milhões de seguidores após a morte do titular. Ou decidir se uma empresa deve indenizar um cliente porque um algoritmo de IA cometeu um erro em um contrato digital. Essas são algumas das lacunas que o atual Código Civil deixa em aberto, obrigando juízes a improvisarem soluções com base em interpretações subjetivas.

 

A comissão de juristas, liderada pelo ministro do STJ Luis Felipe Salomão, trabalhou por oito meses para elaborar um texto que reflete as demandas de um Brasil conectado, diverso e tecnológico. O PL 4/2025 não é apenas uma atualização legal; é um esforço para garantir que o direito civil não se torne um obstáculo ao progresso social. Em um país onde 84% da população usa internet e 30% das famílias são reconstituídas (segundo o IBGE), a lei precisa sair do papel e entrar no século XXI.

 

Por que reformar uma Lei que 'já funciona'?

 

O Código Civil de 2002 foi um marco ao unificar normas dispersas e substituir o antigo código de 1916. Na época, a internet brasileira engatinhava, o conceito de família era majoritariamente heteronormativo, e ninguém imaginava que discutiríamos a responsabilização de robôs por acidentes. Hoje, a realidade é outra.

 

 

A necessidade de reforma surge de três revoluções silenciosas:

 

1. Digitalização da vida: contratos são assinados online, transações financeiras envolvem criptomoedas, e até testamentos começam a migrar para plataformas digitais. O código atual, que trata documentos físicos como norma, não oferece clareza para validar um acordo feito por WhatsApp ou um NFT (token não fungível). Traduzindo para o português, NFT é um código de computador que autentica um arquivo digital, garantindo que ele é único, geralmente usado para representar a propriedade de itens exclusivos, como obras de arte, vídeos, músicas, jogos e propriedade virtual.

 

2. Pluralidade familiar: famílias homoafetivas, poliafetivas e reconstituídas desafiam a visão tradicional de núcleo familiar. Enquanto isso, o código ainda se refere a "marido e mulher" e ignora direitos de parceiros em uniões estáveis longas.

 

3. Tecnologia disruptiva: carros autônomos, algoritmos de recomendação e IA generativa (como ChatGPT) operam em um vácuo legal. Quem responde se um sistema de IA comete um erro médico? O código não prevê isso.

 

Essas mudanças não são futurismo; são questões reais que já chegam aos tribunais. Um exemplo emblemático: em 2023, um juiz de São Paulo precisou decidir se um aplicativo de entrega era responsável por um acidente causado por um entregador terceirizado. Sem regras claras, a sentença foi baseada em analogias — um risco para a segurança jurídica.

 

As revoluções propostas (e os conflitos que geram)

 

O PL 4/2025 mexe em pilares centrais do direito civil, e cada mudança carrega debates acalorados. Vejamos os principais:

 

 

1. Família: do modelo único à customização

 

O código atual oferece quatro regimes de bens para o casamento (comunhão parcial de bens, comunhão universal de bens, separação total de bens, participação final nos aquestos), mas ignora a complexidade das relações modernas. A reforma propõe que casais possam criar regimes patrimoniais personalizados, combinando cláusulas conforme suas necessidades. Para uniões estáveis, haveria regras explícitas sobre divisão de bens, evitando que parceiros dependam de decisões judiciais morosas.

 

A polêmica: críticos argumentam que a flexibilidade pode gerar contratos abusivos, especialmente em relações com desequilíbrio de poder (ex: um cônjuge mais rico impondo condições duras ao outro). Já os defensores destacam que a mudança reconhece a autonomia da vontade, princípio basilar do direito civil.

 

2. Herança: entre a liberdade e a proteção

 

Atualmente, 50% do patrimônio de uma pessoa (a "parte legítima") é reservada a herdeiros obrigatórios (filhos, cônjuge). O PL 4/2025 permite que até 50% dos bens sejam destinados a terceiros — um amigo, uma ONG ou até um animal de estimação.

 

O conflito: de um lado, há quem defenda a liberdade individual para dispor dos próprios bens. De outro, juristas alertam que idosos vulneráveis podem ser pressionados a alterar testamentos sob influência de golpistas. A reforma tenta equilibrar os interesses ao exigir formalidades rígidas para testamentos, como gravação em vídeo e testemunhas.

 

 

3. Contratos digitais: o fim da letra miúda

 

Plataformas como Netflix, Uber e bancos digitais operam com termos de uso extensos e incompreensíveis para o usuário médio. A reforma obriga empresas a apresentar cláusulas de forma clara e acessível, sob pena de nulidade. Além disso, prevê indenizações para vítimas de práticas abusivas em contratos automatizados.

 

O desafio: como fiscalizar empresas globais que operam no Brasil? A proposta sugere que plataformas estrangeiras nomeiem representantes legais no país, sujeitos à jurisdição brasileira.

 

4. IA no banco dos réus: quem paga a conta?

 

Se um sistema de IA usado em um hospital diagnosticar erroneamente um paciente, quem responde? O código atual não diferencia danos causados por humanos ou máquinas. O PL 4/2025 estabelece que fabricantes e operadores de IA são responsáveis solidários por danos, salvo se provarem que houve uso indevido pelo usuário.

 

A controvérsia: empresas de tecnologia argumentam que a regra pode inibir investimentos. Juristas rebatem: sem responsabilização, a sociedade arcará com os riscos de algoritmos opacos.

 

Impactos reais: do tribunal ao cotidiano

 

A reforma não é uma discussão abstrata. Ela afetará vidas concretas:

 

• Heranças digitais: hoje, familiares precisam entrar na Justiça para acessar e-mails ou redes sociais de entes falecidos. Com a reforma, será possível incluir ativos digitais em testamentos, evitando batalhas judiciais traumáticas.
• Uniões estáveis: inclusão de regras específicas para união estável e divisão de bens.
• Redução da litigiosidade: regras mais claras podem evitar disputas judiciais desnecessárias.
• Proteção ao consumidor: vítimas de cobranças indevidas em aplicativos poderão exigir reparação direta, sem precisar processar empresas sediadas no exterior.

 

Para advogados e juízes, a mudança exigirá atualização profissional. Conceitos como "NFT" e "contrato inteligente" (smart contracts) precisarão ser dominados. Já as empresas terão de revisar modelos de negócio — seguradoras, por exemplo, criarão apólices para riscos de IA.

 

O dilema da reforma: progresso vs. segurança

 

O grande desafio é encontrar o ponto de equilíbrio entre modernização e estabilidade. Juristas dividem-se em dois campos:

 

• Os progressistas, como a professora de Direito Civil Maria Berenice Dias, defendem que a reforma é urgente para incluir minorias e reduzir litígios. "Um código que ignora famílias LGBTQIA+ é um código que promove injustiça", afirma.
• Os conservadores, como o jurista José Fernando Simão, temem que a flexibilização excessiva gere insegurança. "Direito Civil é baseado em tradição. Mudanças radicais podem criar mais conflitos do que resolver", alerta.

 

Há também riscos práticos. Se o texto for muito aberto (ex.: "regimes de bens personalizados"), juízes podem interpretá-lo de formas contraditórias, gerando insegurança. A solução proposta pela comissão é detalhar regras no próprio código e criar guias de interpretação para os tribunais.

 

Conclusão: um código civil para o Brasil real

 

 

A Reforma do Código Civil não é sobre artigos legais, mas sobre pessoas. Trata-se de garantir que uma mãe solo não perca a guarda do filho porque a lei não reconhece sua família, que um idoso não seja vítima de um testamento fraudulento, ou que um pequeno empreendedor não quebre por um erro de um algoritmo.

 

Karl Popper, ao defender a "sociedade aberta", lembrava que instituições rígidas acabam corroídas por sua própria incapacidade de se adaptar. O Código Civil de 2002, embora bem-intencionado, tornou-se uma camisa de força para um Brasil que mudou. A reforma é uma oportunidade para que o direito civil deixe de ser um obstáculo e passe a ser uma ferramenta de inclusão, inovação e justiça.

 

Agora, a pergunta que fica é: o Congresso Nacional terá coragem de priorizar o futuro em vez do conforto do passado? Enquanto isso, cidadãos, empresas e juízes seguem navegando em um mar de incertezas — esperando que a lei, finalmente, chegue ao século XXI.

 

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Certamente, nesta coluna, falaremos mais sobre o tema e suas discussões. Afinal, leis são ferramentas, não grilhões.

 

Vinícius Ayala é Advogado e Professor

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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