Há algum tempo venho acompanhando estarrecido o caso das cientistas Ana Bonassa e Laura Marise, responsáveis pelo canal "Nunca Vi 1 Cientista". A dupla tem por propósito exatamente fazer divulgação científica séria e de uma forma que faça com que a nossa meninada tenha o sonho de ser cientista e não de fazer dancinha no tik tok.
Só pelo propósito elas já mereciam, pelo menos, alguma dessas honrarias de Estado por relevantes serviços prestados à sociedade. Entretanto, o que elas ganharam foi um processo.
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Um charlatão, mais interessado em likes e vendas, publicou que “vermes causam diabetes”. Ao fim do vídeo, o miserável vende um tal de “protocolo de desparasitação”, que nada mais deve ser do que um nome gourmet para “remédio de verme” que existe desde a infância dos nossos avós. Entretanto, na mente delirante destes mentecaptos, qualquer coisa pode virar a panaceia de todos os males, desde que se compre um “combo com incríveis 50% de desconto para os 100 primeiros que chamarem no direct”.
Pois bem, a dupla científica daí de cima teve acesso ao vídeo e fez o vídeo delas, este cientificamente embasado, para explicar que essa afirmação é falsa e não existe qualquer evidência, por mínima que seja, atrelando vermes e diabetes.
O que o sensível “influencer” fez? Processou as duas! Afirmou que se sentiu humilhado, exposto e outras baboseiras mais. Pediu indenização por danos morais e a retirada do conteúdo (delas) do ar.
Se a história parasse aqui já seria absurdo, e eu estaria talvez imaginando quão constrangedor é saber que alguém compartilha da mesma profissão que eu e se prestou a assinar um pedido judicial desta natureza.
Mas piora! Piora porque o pedido judicial foi aceito e o vídeo foi retirado do ar! Sim, uma decisão judicial entendeu por bem que era razoável manter o vídeo dos vermes diabéticos no ar e o vídeo que mostra a falsidade desta maluquice foi censurado!
A defesa das cientistas apresentou reclamação perante o Supremo Tribunal Federal (STF) por violação da ADPF 130, ação que reconheceu a incompatibilidade da antiga lei de imprensa com a atual Constituição.
Um parêntesis importante: o advogado não “saltou etapas”. A reclamação é um instrumento jurídico previsto na Constituição que permite provocar um tribunal para garantir o cumprimento de suas decisões. Se a ADPF foi decidida no STF, a reclamação vai para lá mesmo.
Voltando ao caso, o STF, por decisão liminar do ministro Dias Toffoli, suspendeu a decisão e determinou o retorno do vídeo ao ar.
Qual o ponto: este caso me lembrou de um episódio da série Black Mirror denominado "Nosedive", cujo enredo é centrado basicamente em uma lógica distópica de uma sociedade fundada na validação social.
Não importa ser verdadeiro, mas conseguir “pontos” sociais. Quanto mais pontos sociais, melhor “ranqueado” e, por consequência, com mais acesso social. Neste contexto, é melhor agradar do que ser verdadeiro, pois ser falso e agradável te dá pontuação social e a sua vida melhora.
Por sua vez, ser verdadeiro e desagradável implica em reprovação social e sua vida vira um lixo, podendo te levar até à prisão. Percebeu uma semelhança com a realidade?
Além da distopia de ter um monte de gente com uma facilidade impressionante de fazer afirmações absurdas na internet, observa-se a ausência de constrangimento em ser estúpido. Receio já observar um certo orgulho em ser ignorante, em fazer afirmações esdrúxulas simplesmente por vontade e, essa é a pior parte, querer impor ao outro que engula isso calado.
Assusta mais ainda que isso tenha reflexo no Poder Judiciário! Esse é um ponto de inflexão que merece gerar espanto e fazer parar para pensar.
É preciso dar nome às coisas, pois o direito é integralmente baseado na linguagem. Se as coisas (e estou sendo genérico propositalmente) não têm nome, o direito perde a sua base de sustentação e caímos em um caldo absolutamente indistinguível do que é direito e do que não é.
A linguagem, principalmente a linguagem do direito, precisa ser relativamente “conservadora” no sentido de preservar significados próprios. Eis aqui um bom exemplo da crítica que já fiz aqui acerca da linguagem simples.
A linguagem simples não pode ser a linguagem pobre e muito menos linguagem fluida, onde tudo pode significar qualquer coisa. Somando-se a isto, é preciso reorganizar o que nós entendemos como crítica, principalmente partindo da premissa de que as pessoas precisam ter a segurança de afirmar que uma estupidez é uma estupidez!
Se o estúpido fica chateado, ele não pode deixar de ser estúpido por isso. Apenas se torna um estúpido chateado. Do contrário, este tipo de decisão judicial, como esta que acolheu o pedido do charlatão, se torna um instrumento pedagógico às avessas, pois vai empoderar o estúpido e fazê-lo se orgulhar da própria estupidez.
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Conforme nos ensina Jean-François Marmion, no seu icônico livro “Psicologia da Estupidez: não existe um mundo sem idiotas e lidar com eles é um desafio” (vale a pena ler este livro! Vai por mim):
“Não contente em gerar a infelicidade alheia, o estúpido inoportuno ficará contente consigo mesmo. Inabalável. Imune à hesitação. Certo de estar no seu direito. O imbecil feliz não se importa em perturbar os outros. O estúpido considera as suas crenças como verdades gravadas no mármore, embora todo o saber esteja alicerçado na areia. A dúvida enlouquece, a certeza estupidifica, é preciso escolher um lado. O estúpido sabe mais do que todo mundo, inclusive o que se deve pensar, sentir, expressar e como se deve votar. Ele sabe melhor do que você quem você é, e aquilo que é bom para você. Se você não concordar com a opinião dele, o estúpido irá menosprezá-lo, insultá-lo e magoá-lo, literal ou figurativamente, para o seu próprio bem. E já que ele pode se arriscar impunemente em nome de um ideal superior, talvez atente contra essa escória a que, na visão dele, se resume à sua existência” (p. 11).
Se o Judiciário embarcar nesta, os idiotas venceram de vez.