Todos acompanharam na semana passada o desenrolar das acusações de assédio sexual imputadas ao então ministro dos Direitos Humanos, Silvio de Almeida. Tais acusações, ao final da semana, culminaram na demissão do Ministro, mesmo com a sua sustentação de inocência.
Parêntesis 1: vou usar aqui o termo assédio sexual porque é termo que foi utilizado em todas as comunicações, inclusive a comunicação oficial do Palácio do Planalto. Entretanto, o art. 216-A do Código Penal é claro ao estabelecer que só comete assédio sexual o superior hierárquico ou quem exerce ascendência inerente a emprego, cargo ou função. Logo, como não há hierarquia entre acusado e acusadora, qualquer que seja a imputação, não é assédio.
Voltando: o desenrolar do caso levantou uma questão muito interessante para se pensar, que é a apropriação dos representantes da esquerda de mecanismos jurídicos que, historicamente, eram combatidos. Para entender isso é preciso dar uns bons passos para trás para conseguir dar alguns passos para frente e chegar onde estamos hoje.
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Primeiramente, a esquerda nasce em um contexto de absoluto desprezo e indiferença com minorias. É preciso ter isso em mente para entender que a esquerda nasce racista, xenófoba, misógina e todos as outras ofensas que você puder imaginar.
O objeto da discussão da esquerda, no nascedouro, era econômico e com o objetivo de tomar o Estado. Ponto, fim da história. Obviamente que, com o caminhar dos acontecimentos históricos, as coisas vão, aleatoriamente, ganhando contornos próprios, a depender de contextos muito peculiares e circunstanciais.
Assim, a discussão sobre a questão racial vai para a esquerda apenas no sec. XX, como se viu, somente a título de exemplo, com Malcom X, nos EUA. Da mesma forma, a questão do feminismo surge e ganha força na segunda metade do sec. XX, com a difusão de escritos como os de Simone de Beauvoir, na França.
Tais discursos, por circunstância e afinidade, foram cooptados por representantes da esquerda e criaram, dentre outras questões, as discussões sobre as minorias. Aqui esse movimento desemboca em uma encruzilhada, qual seja: a forma como esses temas foram incorporados ao discurso e à ação política destes grupos.
Isto porque um dos grandes movimentos da esquerda ocidental (vou arriscar aqui, mas tenho de onde tirar esta afirmação) é a crítica contra o sistema penal, como estrutura economicamente organizada para perseguir os mais fracos. Todo o discurso da esquerda é sustentado contra o aparelho repressivo do Estado, visto como máquina de “punir os pobres” (Loïc Wacquant).
Ou seja, o sistema repressivo é algo para ser evitado, combatido e reduzido, visto que a ampliação do sistema repressivo implica em ampliação da violência contra os pobres e marginalizados. Para isso, basta dar uma lida rápida em programas de governo, teses acadêmicas e manifestações para ver como rapidamente temas como abolição ou desmilitarização das polícias, seletividade penal e redução do sistema prisional aparecem.
Paradoxalmente, quando a esquerda ganha amplos espaços de poder, principalmente a partir da década de 1980, passa a buscar a proteção das minorias que assumiu o dever de defender exatamente por meio do sistema de justiça criminal.
Quem observou este fenômeno de forma muito sagaz foi Maria Lúcia Karam, ilustre representante do pensamento acadêmico de esquerda no Brasil, quando publicou o seu famoso artigo “A esquerda punitiva”. Neste texto, ela demonstra como a esquerda se afasta da crítica ao aparelho repressivo do Estado e passa a inflá-lo a pretexto de proteger os seus, ou seja, mulheres, negros, população LGBT etc.
Para visualizar este fenômeno no Brasil, basta ver a Lei de Racismo (ampliada para as questões de LGBTfobia) e a lei Maria da Penha para ter um panorama muito claro deste movimento de ampliação do aparelho repressivo do Estado. Curiosamente, os mesmos representantes de esquerda continuam a se comportar com efusivas críticas aos agentes da repressão do Estado, o que evidencia um comportamento, no mínimo, contraditório.
Ou o aparelho repressivo do Estado é bom ou não é. Afinal, é o mesmo sistema que é acionado quando um jovem negro periférico é acusado de furto de manteiga ou quando uma jovem negra periférica é vítima de violência doméstica. E é neste momento que eu volto para o título.
Parêntesis 2: pode confessar, você já tinha achado que eu havia perdido o fio do raciocínio! Tudo bem, a volta foi grande, mas é aqui que o novelo fecha.
Voltando: quando o sistema de justiça criminal é utilizado como ferramenta “útil” para tudo, ele se transforma em uma autofagia institucional. O uso pontual, casuístico e pouco refletido do sistema penal para resolver problemas leva a situações de “tela azul”.
Isso ocorre quando um jovem negro periférico pratica violência doméstica; quando uma pessoa LGBT pratica racismo; quando uma mulher negra agride uma mulher branca, e assim por diante. Os exemplos são infinitos e a questão é sempre a mesma: quem é o vulnerável? Quem é a vítima do sistema? Quem precisa de mais garantias? A conta fica difícil de fechar.
E foi o que ocorreu no presente caso. A vítima é uma mulher que se identifica como negra, periférica e representante das minorias. O acusado, por sua vez, é um homem negro, que construiu a sua vida no desenvolvimento de conhecimento sobre os excluídos e representante das minorias em um espaço de poder que, muitas vezes, era frisado como opressor.
Analisados isoladamente, ambos são potenciais vítimas de um sistema que foi constituído para manter as estruturas de poder ricas e brancas. Quando um bateu de frente com o outro, ficou nítida a dificuldade de defender tanto a vítima quanto o acusado, pois qualquer dos lados a tomar levaria, inevitavelmente, a assumir a posição de “opressor” em relação ao “outro”.
Duvidar de uma mulher que afirma ter sido vítima de violência de gênero é um sacrilégio. Por sua vez, apontar o dedo e acusar veementemente um homem negro de um crime sem lhe dar o benefício da dúvida é reproduzir o discurso do “etiquetamento social”, que afirma que há pessoas que parecem criminosas mais do que os outros, especialmente quando a cor da pele não é branca (Erving Goffman e Howard Becker).
Talvez este caso emblemático sirva para a gente refletir que o sistema de justiça criminal não pode ser pensado como ferramenta de correção de problemas históricos e sociais. Da mesma forma, sirva para pensarmos duas vezes naquelas situações em que é fácil “tacar pedra”.
Se, com a mesma vítima, o acusado fosse o ministro Mauro Vieira, homem branco, de carreira diplomática e historicamente distante de lutas internas por minorias, seria tão difícil acusa-lo e defender a vítima? Se, com o mesmo acusado, a vítima fosse o ministro Márcio França, homem branco, empresário e ligado à elite de São Paulo, seria tão difícil defender o acusado e duvidar da vítima?
O paradoxo de tudo isso é que, a pretexto de proteger minorias, criamos mais etiquetamento do que existia antes e, via de consequência, um sistema de justiça mais caótico, menos técnico e mais inseguro para aqueles que se pretendia proteger. A legislação aqui é indutora de prejulgamentos, preconceitos e dissídios sociais que ainda não foram tratados em outras instâncias, as corretas.
Espero muito que o ministro Silvio de Almeida tenha seus direitos humanos respeitados e possa exercer o seu direito de defesa de forma ampla e exauriente, como qualquer um deveria poder. Espero também que vejamos a necessidade de pensar estas questões complexas com a serenidade que merece e não a bile, como vem ocorrendo nas últimas décadas.