Carlos Starling
Carlos Starling
Saúde em evidência

Vida em ciclos

É curioso como valorizamos o silêncio apenas depois de conhecermos o ruído tenebroso da doença

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Sempre me fascinou como a medicina se assemelha à poesia. Ambas tentam capturar a essência da vida em suas manifestações mais profundas. No hospital ou consultório, observo diariamente o ciclo de emoções que meus pacientes atravessam – do diagnóstico à cura ou, por vezes, à aceitação de uma nova realidade.

A vida é assim: um constante movimento entre extremos e suas nuances intermediárias. Gosto, desgosto e contragosto. Quantas vezes vi nos olhos de um paciente o sabor amargo de um diagnóstico difícil transformar-se, com o tempo, em um retrogosto de aceitação? A medicina nos ensina que nada é permanente, nem mesmo as sensações mais intensas.

Em minha especialidade, a infectologia, lido constantemente com a dualidade entre luz e sombra. Vírus, bactérias e fungos invisíveis aos olhos projetam sombras gigantescas na vida de quem eles afetam. Porém, é justamente na penumbra que muitas vezes encontramos as cores mais vibrantes da existência – a gratidão pela saúde recuperada, o valor de cada dia vivido.



Lembro-me de uma paciente que, após meses de tratamento contra uma tuberculose resistente, me disse: "Doutor, nunca ouvi sons tão bonitos quanto o silêncio de meus pulmões sem aquela tosse". É curioso como valorizamos o silêncio apenas depois de conhecermos o ruído tenebroso da doença. Por vezes, desse contraste nasce uma música interior que ressignifica toda a existência.

Durante a pandemia, quantos sonhos não foram interrompidos? Quantas realidades não foram drasticamente alteradas? Vivemos coletivamente um pesadelo global. No entanto, foi também nesse período que testemunhei alguns dos mais belos exemplos de felicidade nas pequenas coisas – o reencontro seguro após a vacinação, a primeira respiração fora da ventilação mecânica de um paciente recuperado.

A lua, em suas fases, sempre me serviu de metáfora para explicar aos pacientes os ciclos de suas enfermidades. "Veja," digo a eles, "hoje sua doença está como a lua cheia, evidente e dominante. Mas, aos poucos, passará pela minguante até quase desaparecer." A lua nova representa aquele momento de incerteza, quando não sabemos se o tratamento está funcionando. E então, como a crescente, os sinais de melhora começam a aparecer gradualmente e a luz brota novamente nos olhos.

Nas noites de plantão, observei inúmeras vezes a lua pela janela do hospital e pensava sempre em quantas histórias ela já havia testemunhado. Lua cheia, nova e minguante – às vezes, encantamento para alguns, presságio para outros. Os antigos acreditavam que ela influenciava os humores e as doenças. A ciência moderna descartou muitas dessas crenças, mas como médico admirador da lua, não posso deixar de notar a poesia nessas conexões.

A crônica hospitalar que vivo diariamente oscila entre ficção, quando tentamos prever o curso de uma doença; crônica, no acompanhamento rotineiro dos casos; e notícia, nos momentos decisivos de piora ou melhora. Mas é na poesia dos pequenos gestos – um aperto de mão agradecido, um sorriso sob a máscara, um olhar de esperança – que encontro o verdadeiro sentido da medicina.

Riso e pranto convivem nos corredores hospitalares, frequentemente separados apenas por uma fina parede. E quantas vezes não ouvi o suspiro de alívio de um familiar ao receber boas notícias? O céu e a terra se encontram naquele momento, e o horizonte da vida se expande novamente.

Passos apressados no corredor, pausas tensas durante um procedimento crítico, a corrida contra o tempo em uma emergência – ritmos que, eventualmente, se transformam na dança harmoniosa da recuperação. Encontros que marcam o início de tratamentos, despedidas nem sempre desejadas, e retornos que celebramos com a discrição profissional que mal consegue esconder nossa alegria.

A verdade que precisamos comunicar, a meia verdade piedosa que ocasionalmente consideramos, e os segredos que guardamos sob o sigilo médico – dilemas éticos que, com o tempo e experiência, transformam-se em sabedoria clínica.

Cada paciente que atendo está em algum ponto desse ciclo: início de uma jornada diagnóstica, meio de um tratamento complexo, ou fim de uma batalha – seja ela vencida ou não. E sempre me impressiona como, mesmo nos finais, encontramos sementes de recomeço.

No frio do medo inicial, no calor da febre persistente ou na brisa da convalescença, buscamos oferecer o aconchego do conhecimento científico temperado com humanidade. Palavras técnicas se misturam com gestos de cuidado, mãos lavadas e olhares atentos, buscando sempre a compreensão mútua que transcende o puramente médico.

A luta contra patógenos e genes de resistência invisíveis, o cansaço das longas jornadas e o merecido descanso após uma vida de luta – ritmos que marcam não apenas a carreira médica, mas a própria existência humana. E quando a vitória parece vir, mesmo que temporária sobre a inevitabilidade da condição humana, celebramos discretamente.

Sabemos, como médicos e como seres humanos, que o tempo, o espaço e a memória nos dão a verdadeira dimensão da vida. E que, às vezes, nos é concedido um breve vislumbre da eternidade – não na imortalidade impossível, mas na continuidade dos ciclos que observamos, tratamos e, eventualmente, nos tornamos parte.

Dia após dia, noite após noite, entre crepúsculos de incertezas e luares de esperança, seguimos – médicos e pacientes – escrevendo essa crônica infinita chamada vida.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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