Carlos Starling
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O último encontro

Leia é quase uma jornalista investigativa. Me noticia tudo, antes que todos os jornais o façam

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Leia é nossa funcionária há muitos anos. Mora em Vespasiano, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Pega dois ônibus para chegar pontualmente às 6h e preparar nosso café da manhã. Apesar de uma deficiência física na perna direita e de uma asma complicada, chega sempre com um sorriso no rosto e histórias para contar.

Geralmente, uma história por dia. Um atropelamento em que o atropelado voou pelos ares ao ser atingido por um carro em alta velocidade, em uma das longas avenidas que cruzam a cidade e fazem parte de seu trajeto diário. Há poucos dias, me contou de um jovem que, após uma briga com a namorada, esborrachou na sua frente em plena Praça Sete, Centro de Belo Horizonte. Descreveu em detalhes a posição do corpo, as vísceras expostas e o desespero da namorada, que acompanhou todo o trajeto da janela ao chão.

— Dr. Carlos, e se ele tiver se arrependido no meio do caminho?! Menino novo é assim, não vê a vida que tem pela frente.

Nesse caminho diário de acontecimentos absurdos, que refletem sua jornada pela vida, não deixa de passar os olhos nas pessoas que se acumulam cada vez mais na região do Bonfim, a nossa Cracolândia de BH. No meio daqueles seres desesperados, um deles pode ser o seu irmão, que vez por outra aparece na casa da mãe e vende até as panelas para comprar drogas.

Leia nos atualiza acerca da existência de um mundo que geralmente muitas pessoas fazem questão de ignorar. A realidade que, por vezes, fazemos questão de não perceber, apesar de estar escancarada em cada esquina desse nosso país e de boa parte do mundo.

Hoje, quando me levantei às 6 da manhã, já vestido com meu traje de ciclista, a Leia já estava na cozinha. Com um tom solene e voz embargada, me disse: “O Papa morreu!”, “Que isso, Leia? Quem te disse isso? Ontem ele até andou de Papa Móvel e deu a bênção na Praça de São Pedro”, “Pois é, morreu. Ouvi agora quando estava vindo no rádio do táxi-lotação”.

Leia é quase uma jornalista investigativa. Me noticia tudo, antes que todos os jornais o façam. Levanta hipóteses sobre as tragédias que vivencia em seu bairro e no caminho de lá até a nossa casa. Com a notícia da morte do Papa, não foi diferente.

— O Sr. não acha que ele exagerou na celebração da Semana Santa? Tava velhinho e tinha acabado de sair do hospital, onde ficou mais de 30 dias entre a vida e a morte. 

Na minha opinião, exagero, sim. “Pode ser, Leia”, concordei com ela, ainda titubeando sobre a veracidade da notícia, quando ela veio com uma hipótese ainda mais intrigante. “Pra mim, o pior foi o encontro com aquele vice-presidente dos americanos. Aquele homem foi enviado pelo diabo. Ou era o próprio, de terno e gravata. Foi lá pra falar para o Papa: ‘Eu te venci!’. 

— Que isso, Leia, agora você viajou na maionese — respondi, atordoado com a notícia e, principalmente, pela hipótese levantada por ela.

Saí para o meu religioso pedal, ainda com as ideias da Leia na minha cabeça. Será?!! Não sou um escritor de ficção, pelo menos até esse momento. Mas a coincidência é um prato cheio. Liguei o rádio do carro e a notícia da morte havia acabado de ser confirmada pelo Vaticano. A reportagem repetiu sua última Bênção Urbi et Orbi, aos fiéis. Francisco saudou e desejou a todos uma boa Páscoa. No texto, alertou que “não é possível haver paz sem um verdadeiro desarmamento” e sublinhou que “a necessidade que cada povo sente de garantir a sua própria defesa não pode transformar-se numa corrida generalizada ao armamento”.

E Francisco continua com sua mensagem histórica: “Não é possível haver paz onde não há liberdade religiosa ou onde não há liberdade de pensamento nem de expressão, nem respeito pela opinião dos outros”. Ditadores e golpistas detestam ou não entendem essa fala.

E Francisco continua: “A luz da Páscoa incita-nos a derrubar as barreiras que criam divisões e que acarretam consequências políticas e econômicas. Incita-nos a cuidar uns dos outros, a aumentar a solidariedade mútua, a trabalhar em prol do desenvolvimento integral de cada pessoa humana”.

E continua: “Apelo a todos os que, no mundo, têm responsabilidades políticas para que não cedam à lógica do medo que fecha, mas usem os recursos disponíveis para ajudar os necessitados, combater a fome e promover iniciativas que favoreçam o desenvolvimento. Essas são as ‘armas’ da paz: aquelas que constroem o futuro, em vez de espalhar morte!”.

E concluiu: “Entreguemo-nos a Ele, o único que pode renovar todas as coisas (cf. Ap 21, 5)! Feliz Páscoa para todos!”

Francisco, Jorge, na realidade, se entregou ao mistério no dia seguinte. Lutador contra os dragões do medo, da injustiça e da desesperança, deixou uma mensagem clara contra a mentira, a hipocrisia e a desigualdade social mundial. Um argentino, torcedor do São Lourenço. Eles agora estão nos ganhando de goleada: um Papa a zero!

Difícil empatar esse jogo, principalmente considerando o bolão que ele jogou.

Apesar de não ser supersticioso, é impossível não considerar a hipótese da Leia. Será que a última visita que Francisco recebeu não teria sido do seu oponente?! Ou do seu chefe maior, que, escondido nas trevas de uma casa descolorida, vem tramando exatamente o oposto do que Francisco sempre pregou?!

Nessa tarde, Leia arrumou a cozinha e voltou para casa, no mesmo trajeto do seu ir e vir. Amanhã será uma nova história a ser contada.

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As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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