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Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE EM EVIDÊNCIA

Escalador de muros

Uma existência sem muros seria como filosofia sem questionamentos e poesia vazia, sem propósito, sem possibilidade de crescimento

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A vida inteira tenho tentado ser um escalador de muros. Todo tipo de muro: baixos, altos, longos, curtos e alguns, a princípio, quase intransponíveis. Cada muro, uma sombra da realidade a ser desvendada e transposta.

 


Quando menino em Ibiá, inspirado na novela “Sheik de Aghadir”, decidi virar um dos personagens mais enigmáticos: o rato. Uma espécie de "Zorro de Aghadir". Subi no telhado de uma cozinha que separava minha casa de nossa vizinha de décadas, Dona Marocas, mãe de dois fazendeiros icônicos na cidade, Juquinha e Tota. Coisa de menino, seguir o impulso que nos move além de nossas limitações aparentes. Esforço natural para perseverar no ser, mesmo diante dos riscos.

 


Minha aventura e de mais dois comparsas não deu muito certo. Eu me segurei numa chaminé já corroída pelo tempo e ela não resistiu. Acabei dentro do galinheiro da Dona Marocas, que logo chamou seus dois dedicados filhos: “Juquinha, Tota, corram aqui! Tragam a garrucha! Tem ladrão de galinha no galinheiro!”.


Como disse Clarice Lispector, "o mundo todo é um mistério que não vale a pena tentar compreender". E ali estava eu, tentando explicar o inexplicável. Diante do alerta eloquente, logo me identifiquei: “Calma, Dona Marocas, vim só pegar minha bola que caiu aqui”. O Tota, com sua sabedoria simples, emendou: “Tá chovendo menino no galinheiro, mãe. Mas não é ladrão, não! É o Carlos Ernesto pegando a bola dele”. “Ah, bom! Então guarda a garrucha, Juquinha. Prepara o Merthiolate”.

 


Correndo da garrucha e principalmente do Merthiolate, passei como uma bala entre eles - sujo dos pés à cabeça com fuligem de chaminé misturada com penas e cheirando a esterco de galinha. Fui para casa sofrer com os beliscões fininhos da minha mãe. Não aprendi. Continuei escalando muros. Outros muros que a vida nos impõe. Como dizia Nietzsche, é preciso ter o caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante.


O controle de infecções hospitalares tem sido outro muro complexo de escalar. Em 1986, essas infecções eram consideradas inexistentes pela maioria dos médicos do Brasil e do mundo. Muitos preferiam permanecer nas sombras do que enfrentar a luz da verdade: nossos hospitais eram inseguros. Eram?!! Topei a parada. Rodei Minas, o país e o mundo aprendendo e ensinando como minimizar riscos assistenciais. Ainda hoje, não consegui saber onde esse muro termina. Continuo escalando.

 


Nesse caminho, cheguei ao Hospital da Baleia, em 1992, onde estou até hoje trabalhando no Controle de Infecções Hospitalares. Contraí uma doença incurável: "a baleíte". Definida como SAS - "síndrome amorosa pelo semelhante", ajudei a construir projetos importantes, como o "Doe o seu troco", absorvido por amigos generosos, donos de grandes redes de farmácia e supermercados de Belo Horizonte. As moedinhas e centavos viram vida para milhares de pacientes atendidos nessa instituição e as ajudam a se manter viável para cumprir sua missão assistencial. O amor pelo todo universal que se manifesta na atitude de uma sociedade e em cada um, em particular.


Escalar muros de bicicleta é coisa para poucos. Pois é, há 25 anos venho tentando! Até o momento já demos o equivalente a mais de três voltas no planeta girando todos os sábados em torno da Lagoa da Pampulha. Seguimos tentando fazer desse esporte, que distribui mais de 40 medalhas olímpicas, algo respeitável em nosso país. Escalar montanhas no Tour de France é mais fácil do que muros do Brasil.


Veio a pandemia de COVID-19! Foi aí que entendi o sentido dos muros anteriores. Era o treino para o que viria depois. Hoje, cinco anos após iniciarmos essa escalada, posso lhes afirmar que continuamos tentando descer desse muro que insiste em continuar de pé nos desafiando. Estamos no gerúndio e não no futuro. Como disse Drummond, "as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender". Novos muros, escorregadios e perigosos, estão logo ali na esquina, prontos para nos desafiar. 


Escalado um muro, outros surgem ainda mais altos e longos. O muro do momento é o do Trump - “o soco no estômago”. Símbolo do egoísmo e da separação dos povos do mundo, o muro da vergonha nos remete a tempos pré-civilizatórios. Cada muro superado é uma nova descoberta. Como escreveu Clarice: "Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido." Os muros são nossos mestres silenciosos, ensinando-nos que "as palavras são certas no escuro".

 

Uma existência sem muros seria como uma filosofia sem questionamentos e uma poesia vazia, sem propósito, sem possibilidade de crescimento. Precisamos de muros, não para nos limitar, mas para nos impulsionar além de nossas limitações. 

Outra coisa que aprendi ao longo dos anos é que não se escala muros sozinho. É preciso de alguém para te dar pezinho. Alguém que caia com você dentro de galinheiros e compartilhe o prazer de anos depois, contar histórias.

O que seria de nossas vidas se não fosse o desafio dos muros?! Certamente, uma mesmice sem fim, insípida, inodora e incolor. Precisamos de muros, sem medo do Merthiolate. "Não é preciso ter coragem. É preciso apenas seguir adiante." Obrigado Clarice, Drummond e parabéns Afonso Borges, amigo e companheiro escalador de muros. 

 

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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