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Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE EM EVIDÊNCIA

A sepse na era da inteligência artificial

Essas tecnologias não são apenas uma ferramenta: são um lembrete de que a ciência e a tecnologia têm o poder de humanizar o cuidado

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Como médico, muitas situações me marcaram. Uma em particular ficou em minha memória como tatuagem. Um residente de pediatria solicitou minha orientação para discutir a indicação de tratamento antimicrobiano para uma criança com febre e em quimioterapia para tratar leucemia. Tratava-se de mais uma interconsulta das dezenas que faço todos os dias, ao longo de mais de 40 anos. Entretanto, me deparei com uma criança de seis anos, agônica, que me olhou fixamente nos olhos. Com uma força impressionante, agarrou meu braço com mãozinhas finas e disse: “Tio, olha que rio bonito, que peixes lindos!”. Faleceu segurando a minha mão. Não conseguimos reanimá-la. Estava com infecção grave, própria de pacientes imunossuprimidos pela doença e pelo tratamento. Quadro que chamamos de choque séptico, ou simplesmente, sepse


 

No escuro corredor das enfermarias, onde a vida oscila em silêncio, a sepse é uma sombra sorrateira, uma resposta desordenada que devora o organismo em ritmo implacável. A sepse faz com que o corpo lute contra si mesmo, inflamando órgãos e destruindo equilíbrios vitais. No Brasil, esse drama se desenrola todos os dias. Em cada hospital, vidas são ceifadas por uma condição que, quando detectada a tempo, poderia ser contida. No país, a taxa de mortalidade por sepse supera a de muitos outros lugares no mundo, sendo uma realidade brutal que nos convida à reflexão e, acima de tudo, à ação.


 

Em 2010, Jacson Fressatto, um analista de sistemas brasileiro, desenvolveu o Robô Laura. A motivação para a criação do Robô Laura surgiu de uma tragédia pessoal: a morte de sua filha Laura, com apenas 18 dias de vida, devido a complicações de uma sepse. Após a morte de Laura, Jacson começou a desenvolver o projeto com o objetivo de criar uma ferramenta que pudesse ajudar a prevenir casos semelhantes e salvar vidas. Como um anjo digital, Laura observa cada batida de coração, cada suspiro, buscando os sinais sutis de perigo. Quando o menor indício se apresenta, ela sussurra aos médicos, clamando por ação, oferecendo a chance de salvar o que ele não pôde.


E assim, através da dor de um pai, vidas são resgatadas. O Robô Laura é mais que um tributo; é uma promessa cumprida, onde tecnologia e amor se encontram. Em cada vida salva, a pequena Laura vive. Em cada coração que continua a bater, sua memória brilha eterna.


A história do Robô Laura é um testemunho poderoso de como experiências pessoais podem inspirar inovações que salvam vidas, unindo tecnologia e compaixão para enfrentar desafios no campo da saúde.


Em 10 de abril de 2024, 14 anos após o Robô Laura, a Prenosis Inc., empresa americana da área de tecnologia, anunciou o Sepsis ImunoScore, aprovado pelo FDA no final do ano passado. Desenvolvida com a precisão da inteligência artificial e o rigor da ciência, essa tecnologia tem o potencial de evitar milhares de mortes. Por meio de algoritmos de machine learning, o Sepsis ImmunoScore interpreta os sussurros dos dados clínicos e laboratoriais, enxergando aquilo que os olhos humanos, por vezes, não conseguem perceber em tempo hábil.


O Robô Laura e o Sepsis ImunoScore não são apenas um conjunto de cálculos frios, mas ferramentas com potencial de evitar, em última instância, o sofrimento alheio. Durante seu desenvolvimento, os pesquisadores aplicaram a tecnologia em coortes múltiplas, buscando compreender o padrão da sepse em seus múltiplos disfarces, atingindo uma precisão extremamente elevada.


Enquanto a IA lança um raio de luz na escuridão, no Brasil, apesar de termos o Robô Laura há mais de uma década, por aqui, a mortalidade por sepse atinge taxas alarmantes de até 55% em algumas unidades de terapia intensiva (UTIs). São vidas que poderiam ser poupadas, histórias que poderiam ter desfechos diferentes se o tempo e a iniquidade social não fossem inimigos implacáveis.


O Brasil é um país de desigualdades profundas. Em muitas regiões, a falta de acesso a diagnósticos rápidos e precisos é uma barreira que custa vidas. A sobrecarga dos sistemas de saúde, a falta de recursos e a escassez de profissionais são desafios diários. O Robô Laura, assim como o Sepsis ImmunoScore, poderiam ser a ponte entre o caos e a cura, oferecendo aos médicos uma ferramenta para ouvir o alarme da sepse antes que seja tarde demais.


A sepse é a tempestade que se forma no corpo, uma sequência de eventos imunológicos que, sem aviso, pode comprometer o prognóstico dos pacientes. No entanto, cada vez que a IA reconhece os sinais dessa tempestade iminente, uma promessa se acende. Uma promessa de que o silêncio pode ser quebrado, que o alarme pode soar a tempo, que vidas podem ser resgatadas.


Essas tecnologias não são apenas uma ferramenta: são um lembrete de que a ciência e a tecnologia têm o poder de humanizar o cuidado. No Brasil, onde a luta contra a sepse ainda é tão desigual quanto a própria realidade do dia a dia, essas tecnologias podem ser o suspiro de esperança que tantas famílias aguardam nas terapias intensivas.


Por mais avançada que seja a inteligência artificial, ela não substitui a compaixão, a dedicação e o toque de carinho da mão humana devidamente higienizada, claro. A ferramenta está lá, pronta para ser usada, mas cabe a nós, profissionais de saúde, políticos e sociedade civil, garantir que seu potencial seja plenamente realizado e socializado. 

 


Assim, no Brasil e no mundo, essas ferramentas, em oposição às armas letais de guerra, acendem uma nova chama na luta pela vida. Uma luta que não se trava apenas com tecnologia, mas com afeto, mesmo diante do rio bonito e dos peixes lindos, que um dia todos nós veremos.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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