4º Flitabira - Festival Internacional de Literatura de Itabira - evento que teve como patrono o poeta Carlos Drummond de Andrade -  (crédito: Acervo CDA/Divulgação)

O Festival Internacional de Literatura de Itabira teve como patrono o poeta Carlos Drummond de Andrade, nascido em 31/10, há 122 anos

crédito: Acervo CDA/Divulgação


Assombração sabe para quem aparece. Em outras palavras, a ignorância é atrevida, inconsequente, desconhece limites e fragilidades. Segundo o filósofo Baruch Espinosa, os homens são movidos por paixões desordenadas quando desconhecem a natureza das coisas, o que os torna facilmente manipuláveis e, paradoxalmente, atrevidos em suas ações. O atrevimento da ignorância faz com que as pessoas, por não terem compreensão suficiente de uma determinada realidade, tendam a agir impulsivamente, convencidas por ideias superficiais e ilusórias.


Nesse final de semana, fui a Itabira participar do 4º Flitabira - Festival Internacional de Literatura de Itabira - evento que teve como patrono o poeta Carlos Drummond de Andrade, nascido em 31/10, há 122 anos. O Flitabira reuniu cerca de 50 convidados em encontros e debates que ocorreram de hora em hora, uma avalanche de sensibilidade debulhando o tema “Amor, literatura e ancestralidade”.

 


Entretanto, o caminho para chegar até o oásis “Drummoniano” é a BR-381, a estrada da morte. Uma serpente cortando montanhas de ferro por onde desfilam milhares de almas conduzindo veículos humanos, por vezes atrevidos e ignorantes. Há muitos anos não passava por ela. Não sei como sobrevivi indo e vindo a Alcobaça e Teófilo Otoni durante boa parte da minha vida.


Na época, o prazer de viajar e chegar era tão grande que eu ignorava os riscos do caminho. Sentir a brisa do mar em Alcobaça, bater pelada no Clube Palmeiras, subir e descer o “morro do zig-zag” e comer acarajé feito pela baiana da praça de Teófilo Otoni é o que interessava. Apesar dos riscos, posso lhes dizer que valeu a pena.

 

 

Mesmo com as reformas e duplicações de pistas em parte do trajeto, os riscos estão em cada milímetro de quilômetro percorrido. Filas intermináveis de carros e caminhões se formam para sair e chegar em Belo Horizonte, tendo como nó cego o posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF). O que deveria ser para dar segurança, acaba complicando o ir e vir dos viajantes.

 


A BR-381 liga São Mateus (ES) à cidade de São Paulo, passando por Minas Gerais. Ao todo, são 1.181km de extensão. Mais de 440 pessoas morreram em acidentes na BR-381, em Minas, entre janeiro de 2021 e outubro de 2023, em 7 mil acidentes registrados pela PRF. Somente no trecho entre BH e Governador Valadares, 32 pessoas morreram entre janeiro e junho de 2023. O trajeto da rodovia remonta aos tempos dos bandeirantes, no século 17. Fernão Dias Paes Leme (que dá nome ao trecho da rodovia entre BH e São Paulo) se arriscou pela região à procura de esmeraldas e foi o responsável pela abertura do caminho original. Em 1952, o trecho entre BH e João Monlevade começou a ser construído, e a pavimentação foi inaugurada em 1960.


Para alguns especialistas em transporte e trânsito, a falta de investimentos aliada às características do traçado da rodovia e ao aumento do volume de veículos circulando, contribui para a alta ocorrência de acidentes com vítimas.


Como a ignorância é atrevida, eu arriscaria dizer que tem mais carne nesse angu. Como ficam os motoristas nesse rastro funesto? Por vezes, seres pacíficos no dia a dia, transformam-se em verdadeiras feras ao segurar um volante. A tragédia em nossas estradas tem como causa uma combinação de fatores, cuja raiz encontra-se inserida no modelo de desenvolvimento pelo qual optamos. O capital não se interessa pelas vidas que desaparecem em nossas estradas, ou nos morros que deslizam e soterram centenas nessa época do ano. As esmeraldas tão desejadas por Fernão Dias precisam circular a qualquer custo.


Dirigindo pelas curvas molhadas por uma chuva fina e torcendo pela aderência dos pneus ao asfalto, ainda assim, os versos de Drummond e a proximidade com seus objetos expostos em sua casa impregnavam minha alma. Em poemas como “A Flor e a Náusea”, Drummond sugere que a ignorância, de certa forma, é uma fuga da realidade. Em “Mundo Grande”, ele nos mostra como a ignorância do próprio potencial ou do mundo à nossa volta pode limitar nossa existência, confinando-nos a uma vida medíocre. Para Drummond, o atrevimento da ignorância surge como uma ironia da vida moderna, em que o desconhecimento é quase confortável, mas sufocante, um entrave para aqueles que desejam encontrar uma verdade mais profunda.


Vale a pena o risco da 381 para visitar Drummond em Itabira e viajar no seu universo. Assim como valeu o risco que corri para ver o mar de Alcobaça. Como diz um provérbio africano: “Eu espero que quando a morte chegar ela te encontre vivo”.