Bertha Maakaroun
Bertha Maakaroun
Jornalista, pesquisadora e doutora em Ciência Política
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Cármen Lúcia: A regulamentação das mídias digitais é prioritária e urgente

Confira entrevista com a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha

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Nesta nova ordem tecnofeudal contemporânea, a centralidade das comunicações foi transferida para as mídias digitais, onde a disseminação e alcance das informações são controlados por algoritmos direcionados ao lucro e a interesses políticos nem sempre explicitados. São processos com profundas consequências sobre a formação das opiniões – inclusive processos de dissonância cognitiva descolados dos fatos e da realidade objetiva – que obliteram a cidadania e as escolhas livres e informadas.

 

 

“Quando as tecnologias impõem ideias e quereres, subliminares e incisivos, às pessoas, subtraem delas a liberdade e de maneira extremamente sutil, mas perversa: algema-se a liberdade pessoal e política sem afirmar que é o que está sendo feito”, considera, em entrevista a esta coluna, a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha.

 

 

“Corroi-se assim, não apenas a estrutura democrática, mas seduz-se o escravizado digital com a luminosidade de telas que impedem ver a realidade”, acrescenta a ministra. Também sob o anonimato proporcionado pelas tecnologias novas, criminosos se sentem livres para práticas que atacam os princípios no direito da dignidade das pessoas atingidas, afirma a ministra. Nesse contexto, a regulamentação das mídias digitais é imprescindível e urgente, defende.

 

 

As big techs estão no centro de mudanças tecnológicas aceleradas, abrindo uma nova ordem em que os mercados deram lugar às plataformas digitais, e feudos políticos são controlados por algoritmos, com consequências para os processos de formação de opinião. Que tipo de desafio essa nova ordem tecnofeudal impõe aos estados democráticos?
As democracias contemporâneas baseiam-se na ideia do poder controlado pelo Direito, formulado pelo povo diretamente ou por seus representantes legais. Essa escolha de qual direito haveria de ser formulado e pelo qual se limitaria o poder do Estado fundamenta-se na ideia e na prática de respeito à liberdade do cidadão. Ele escolhe livremente, segundo seus ideais e crenças, seus representantes e controla a obra feita, quer direta e imediatamente, pressionando legitimamente os legisladores, quer indiretamente nas eleições subsequentes, quando se negam a eleger aqueles que não foram coerentes com suas proposições e compromissos eleitorais. Assim se superou o domínio dos senhores feudais sobre os vassalos. De vassalos passou-se à ideia de súdito e de súdito a cidadão livre. Quando as tecnologias impõem ideias e quereres, subliminares e incisivos, às pessoas, subtraem delas a liberdade e de maneira extremamente sutil, mas perversa: algema-se a liberdade pessoal e política sem afirmar que é o que está sendo feito. O suserano tecnodigital joga com uma tecnologia que põe o ser humano a serviço do dono da máquina, sendo esse o elemento oculto e dominador. O algoritmo é o capataz digital invisível, mas eficiente, que mantém sob as rédeas do querer do dono da empresa e o faz ganhar dinheiros as liberdades humanas. Corroi-se assim, não apenas a estrutura democrática, mas seduz-se o escravizado digital com a luminosidade de telas que impedem ver a realidade. Tenho afirmado que lidamos com o desafio dos quatro V: o volume de dados que assoberbam as telas, quase extensão das mãos da maioria dos humanos; a velocidade dos dados que passam pelas nossas vistas exauridas e incapacitadas de enxergar e raciocinar sobre tudo o que lhe vem aos ao cérebro, sem tempo de reflexão para crer, ou não, aceitar ou não, com liberdade; a viralidade, como vírus os informes prosperam e aniquilam a contestação ou, ao menos, a orientação pessoal livre sobre o que chega como nota, notícia, falsidade ou verdade a cada minuto; e a verossimilhança, que pode levar a pessoa a crer que viu o que não aconteceu, que ouviu, o que nunca foi dito etc.

 

 

Como estados democráticos podem se proteger dos processos de impulsionamento e disseminação de informações falsas, com o propósito de mobilização contra os próprios fundamentos democráticos?
O tecnofeudalismo busca esvaziar o poder estatal e tornar os novos suseranos tecnológicos os senhores de vida e de morte esvaziando a liberdade de pensar, de querer em comunidade e construir o bem de todas as pessoas. Mas a tecnologia está aí para ser dominada e enquadrada segundo as necessidades humanas, não se podendo aceitar que a humanidade tenha de se ajeitar para caber no tecnofeudalismo. Seria bom sempre lembrar Chaplin: somos seres humanos, não máquinas. Elas é que devem nos servir, não nós as servir a elas. Porque então seria o retrocesso da conquista civilizatória humanizada. Acho que o Estado terá de se reinventar em vários contextos. As máquinas estão aí e ajudam a apurar as urgências das pessoas, a verificar as desigualdades que precisam ser superadas para que se tenha uma sociedade mais justa, a simplificar atividades que não precisam mais ser repetidas e levadas a efeito apenas por seres humanos, cuja arte pode ser voltada a atividades muito mais proveitosas para a humanidade e para a realização de cada pessoa. Mas não pode se deixar sucumbir aos interesses dos algoritmos e seus Gepettos, porque a vida de toda uma sociedade é responsabilidade estatal e a vida não cabe numa caixa de ferramentas, por mais brilhosa e plural seja ela. A vida é mais! Quando temos o e-governo, o e-judiciário, etc., estamos nos valendo da tecnologia para melhor prestar os serviços. Mas não se pode descurar que o serviço há de se voltar para as liberdades humanas, não para restrições desumanas.

 

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Em sua avaliação, como resolver a tensão entre liberdade de expressão e a regulamentação de mídias digitais, debate central em todas as democracias ocidentais?
O que o direito constitucional democrático protege é a liberdade, núcleo da construção jurídica legítima. Quando a expressão é manifestação da liberdade ela é protegida. Há leis contra os excessos: desde 1940, o Código Penal define o crime de calúnia, de injúria e de difamação. Nada de novo, portanto. Quando a expressão é prática de crime contra outra pessoa se protege, no direito, a dignidade daquele ou daquela que é atingido por essa ação. As mídias estendem, potencializam e tornam definitivos, muitas vezes, os danos causados pelos crimes cometidos com o uso das tecnologias novas. Por isso, a regulamentação das mídias é prioritária, urgente e há de ser coerente com o quadro de proteção da honra e da dignidade das pessoas, do impedimento a que se alicie criminosos por uso de redes que anonimizam os verdadeiros autores ou mentores das práticas delituosas. Não há espaço – especialmente tão gravosos e potencialmente destrutivos de direitos – sem o cuidado do direito.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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