Bebel Soares
Bebel Soares
PADECENDO

Portas fechadas

Agora as portas estão sempre fechadas, trancadas. Só entra quem retirar a senha com bastante antecedência

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As portas se fecharam e eu não tinha notado. Me dei conta quando alguém me disse: "FOI À CASA DELA SEM AVISAR”, assim mesmo, olhando pra mim e falando em caixa alta, “FOI À CASA DELA SEM AVISAR”. Fiquei olhando e matutando, isso virou um problema. Quando aconteceu que eu não vi? Quando foi que uma visita sem aviso virou invasão de privacidade, quase um ato criminoso?

Quantas vezes eu fui à casa de alguém sem avisar? Quando eu era criança eu atravessava a rua da casa da minha avó e batia na casa da tia para brincar com as primas. E a porta da casa da vó estava sempre aberta, aberta mesmo, no sentido literal, aquele entra e sai de gente, de filho, de neto, de vizinho, de amigo. A gente só ia, sem aviso, e sempre tinha um café na mesa, um bolo, um biscoito de polvilho quentinho sendo oferecido.

Adolescente ia na casa de um amigo, tocava a campainha, tocava o interfone ou entrava sem bater, porque tinha porta que nem se trancava.

- A fulana está aí?

- Está sim, entra. 

- Ela saiu, deve voltar tal horas.

Não precisava ligar antes, marcar horário como quem tem uma audiência. Como foi que eu pisquei e "foi à casa dela sem avisar" virou uma esquisitice, coisa de gente sem noção, stalker? Não cumpriu todo o protocolo de agendamento prévio via mensagem. Não fez uma solicitação em três vias registradas em cartório com firma reconhecida. Hoje, é tanto protocolo que acaba com a espontaneidade dos afetos. 

Estava perto, deu vontade de encontrar, bateu na porta. Passou na rua, sentiu cheiro de café, bateu na porta. Sentiu saudade, foi lá e bateu na porta. Não pode. Agora as portas estão sempre fechadas, trancadas. Só entra quem retirar a senha com bastante antecedência. Se dá saudade e vontade de ver,  ao vivo, dar um abraço quentinho, reprime a vontade, sente desconforto, desiste de ir. Hoje, todo mundo é ocupado demais para receber visita assim, sem cerimônia.

Não pode nem bater na porta do vizinho, tem que chamar no interfone, mandar um zap. Não é permitido simplesmente bater na porta. Nem de vizinho de porta. Até para o encontro existe um celular no meio do caminho. Como dizia o poeta Vinícius de Moraes: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. E o desencontro tem nome, ele se chama smartphone. Antissociais que somos, ficamos confortáveis com essa situação. Mas faz falta.

O que teria sido da minha adolescência se eu não pudesse bater na porta da casa das amigas para conversar fiado? Olhando no olho, rindo, chorando pitangas, ouvindo música. Assim, só ouvindo música mesmo, prestando atenção na melodia, cantando junto. Assim, sem ficar olhando para uma tela, rolando 300 vídeos do TikTok, com uma música tocando sem receber a menor atenção.

Agora tem uma tela no meio do caminho, olho na tela, outro olho do outro lado da tela. Um olho olhando o outro, a tela no caminho. A arte do desencontro, quando podíamos ter tantos encontros pela vida, meu caro poeta. O desencontro que encontra a solidão, força à busca por alguém do lado de lá da tela. Alguém para te ouvir, um ouvido ali dentro da tela. O desencontro encontra, na tela, na palma da mão, a inteligência artificial, que faz papel de amigo, que finge que tem afeto. A IA fingindo-se de gente para suprir a falta que a gente tem de gente.

A falta leva a encontros desencontrados dentro da tela. Grupos de desconhecidos, fóruns de discussão. Pessoas com ideias em comum ou com ideias bizarras e desafios de dor e de tortura. Mentes doentes preenchendo o vazio de mentes carentes de afeto.

Ficamos solitários em um mundo conectado. Se alguém querido está do outro lado do mundo, a gente conversa através da tela, não precisa mais mandar carta, esperar dias por uma resposta. Mas quem está perto acabou ficando distante. As telas se abrem, as portas se fecham. A gente passa na frente das portas e as portas estão fechadas.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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