Bebel Soares
Bebel Soares
PADECENDO

O que acontece na montanha?

Eu me pergunto: o que acontece na montanha? O que leva 200 homens a passar por tudo isso?

Publicidade

Mais lidas

Ele estava ansioso por aquele encontro, buscava ser uma pessoa melhor, queria novos aprendizados, novas experiências e começou sua jornada procurando evoluir como homem, filho, pai, marido e principal provedor da minha família. Os amigos o influenciaram na decisão de participar daquele grupo. Queria subir aquela montanha e viver a mesma experiência transformadora pela qual eles haviam passado.

Aqueles eventos eram ministrados por uma congregação religiosa nova na cidade. Ele queria aproveitar para se reconectar com Deus, com a natureza, melhorar sua espiritualidade, conhecer pessoas. Chegando perto do grande dia, recebeu uma lista do que deveria levar. Os amigos apenas diziam: “O que acontece na montanha, fica na montanha”. O termo de responsabilidade o assustou. Ainda assim, estava extremamente empolgado com o que estava por vir. Imaginava um momento de integração positiva com pessoas, poder fazer novos amigos, caminhadas saudáveis, reflexões de salmos bíblicos sobre o papel do homem nas famílias, dormir bem, se alimentar bem.


Foi recebido de forma fria por homens uniformizados, encapuzados, hostis, muito mal-humorados, arrogantes e egocêntricos, gritando e pedindo silêncio, exigindo extrema disciplina e aplicando exercícios físicos como forma de castigo. No termo de responsabilidade não existiam observações com restrições a uso de telefones ou relógios, mas ele precisou entregar os dispositivos eletrônicos, ato que era chamado de teste de integridade; estava claro, não poderia existir imagens, controle do tempo, distâncias percorridas ou conhecimento geográfico.

Passaram horas em pé, com as mochilas nas costas, pagando agachamentos e flexões. Caminharam na lama debaixo de chuva torrencial, passando por dentro de rios, subindo montanhas, na escuridão e em filas indianas. Foram orientados a uivar sempre que ouvissem uma palavra específica. Foram revistados minuciosa e ameaçadoramente. Receberam um kit de sobrevivência contendo um fogareiro, um abridor de latas e uma pá para cavar um buraco para as necessidades fisiológicas, um saco com alimentos não perecíveis e duas garrafas de água.

Esgotados fisicamente, molhados, paravam para fazer a leitura de salmos. Segundo ele, aquilo parecia uma mistura de seita paramilitar com culto evangélico. Montaram suas barracas no meio da madrugada e, ao amanhecer, foram despertados com rojões de bombas e sinalizadores de fumaça vermelha, um cenário de guerra. Uma bomba explodiu dentro de uma barraca estourando o colchão inflável e fazendo um buraco na mochila.

Aos gritos, eram obrigados a tomar banho no riacho gelado, 200 homens correndo para o rio com lama cobrindo os tornozelos. Foram obrigados a imitar um cachorrinho rolando no chão. Ninguém era chamado pelo nome, eram números. Ninguém podia conversar. E sempre havia momentos de oração entre as atividades.

Pegaram estrada espremidos em um caminhão-baú, sem segurança alguma, infringindo as leis de trânsito. Ele só se lembrava de filmes da Segunda Guerra. Só queria voltar para casa. Mas ainda teve que caminhar em mata fechada, em bambuzais, subir por caminhos íngremes e penhascos, com a ajuda de cordas. Em alguns trechos, alguns passavam mal de exaustão. Ele se sentia um soldado que acabara de finalizar uma batalha, comendo macarrão instantâneo como se fosse um banquete. E a tempestade com trovões e relâmpagos dificultando ainda mais o percurso. Tudo isso para chegar a um ponto onde passariam pelo ritual de batismo.

Na descida, o caminho de volta tinha muita lama, trechos muito íngremes, estava muito perigoso. Ele via as pessoas se machucando, caindo, viu casos de hipotermia, vertigens, desmaios, pessoas tendo que ser resgatadas e encaminhadas para o hospital. Ele mesmo chegou a ter hipotermia e pequenas alucinações. Decidiu que iria embora. Precisou implorar, mas diziam para não desistir e prometiam que a melhor parte ainda estava por vir.

Foi muito difícil, eles iam chamando um por um das hierarquias acima para convencê-lo a ficar! O “tenente” disse que aquilo tudo era um processo que levaria a uma libertação, que o sofrimento era importante para se encontrar com Jesus. Precisou ameaçá-los. Pegou sua mochila com a barraca e foi correndo na chuva até a porteira da fazenda.

A história dele é bem longa e eu precisei contar resumidamente. Eu me pergunto: o que acontece na montanha? O que leva 200 homens a passar por tudo isso? Só consigo me lembrar da filósofa Marilyn Frye, que diz que homens heterossexuais são homoafetivos, segundo ela: “Dizer que um homem é heterossexual implica somente o fato de que ele mantém relações sexuais exclusivamente com o sexo oposto, ou seja, mulheres. Tudo ou quase tudo que diz respeito ao amor, a maioria dos homens heterossexuais reservam exclusivamente para outros homens. As pessoas que eles admiram, respeitam, adoram, reverenciam, a quem honram, imitam, idolatram e formam profundos vínculos, a quem estão dispostos a ensinar e com quem estão dispostos a aprender, e cujo respeito, admiração, reconhecimento, honra, reverência e amor eles desejam, essas são, esmagadoramente, outros homens. Nas suas relações com as mulheres, o que passa por respeito é bondade, generosidade ou paternalismo, o que passa por honra é a remoção do pedestal. Das mulheres querem devoção, serviço e sexo’’.

 

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

Tópicos relacionados:

machismo misoginia preconceito religiao

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay