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A imigração chinesa aos territórios que eram então as colônias britânicas da Península Malaia e de Singapura, ao longo do século 19 e na primeira metade do século 20, é uma história de superação da extrema pobreza. Os imigrantes viviam em condições insalubres, submetidos a trabalhos fisicamente árduos, enfrentando enorme dificuldade financeira.
Fortunas surgiram porém já no século 19. Existe em George Town, capital da ilha e do estado de Penang, a célebre “mansão azul”, ou “mansão de Cheong Fatt Tze”, do nome de seu proprietário original, nascido em 1840 e falecido em 1916. Cheong Fatt Tze elevou-se, pelo trabalho no comércio, a um nível de riqueza tão impressionante que chegou a ser conhecido como “o Rockefeller do Oriente”. Sua casa é hoje um hotel; serviu de cenário, no cinema, para Indochina (1992) e Podres de ricos (2018). Nesse último filme, o jogo de mahjong entre as futuras sogra e nora foi filmado no pátio da “mansão azul”, embora o enredo se passe em Singapura.
Hoje, a população de origem chinesa na Malásia situa-se em torno de 23%. Em Singapura, onde a proporção de chineses étnicos chega a 80%, ao caminhar pelas ruas ouve-se mais facilmente transeuntes conversando em mandarim do que em inglês. A influência chinesa, misturada à malaia, deu origem à cultura peranakan, particularmente viva hoje, nos dois países, e de forma deliciosa, na área gastronômica.
Tash Aw é um dos escritores malásios de língua inglesa mais conhecidos da atualidade. Seus cinco romances – o quinto foi publicado este ano – não foram ainda traduzidos no Brasil. Em Portugal, a tradução do primeiro, The Harmony Silk Factory (2005), recebeu o título de A fábrica das sedas. Durante o primeiro confinamento causado pela pandemia de COVID-19, em 2020, eu acabara de chegar à Malásia, e esse livro me ofereceu a experiência possível do país.
A editora brasileira Todavia lançará, este ano, Estranhos em um píer, obra autobiográfica de Tash Aw de 90 páginas. Ao contrário de Podres de ricos, o livro não nos mostra os excessos dos bilionários contemporâneos, de origem chinesa, na Malásia ou em Singapura. Descreve a criação, a partir da segunda metade do século 20, da classe média urbana malásia.
A aventura familiar começa com os dois avós. Um fala o dialeto chinês hokkien, o outro o dialeto hainanês. Ambos aportam em Singapura na década de 1920, vindos do Sul da China. Estrangeiros no píer, não se sentem porém estranhos ao lugar. A ilha é uma colônia britânica, mas é também um entreposto comercial. A imigração chinesa começara 80 anos antes, e os avós de Tash Aw “estão a muitas gerações de serem pioneiros”. Abandonaram um país “devastado pela fome e pela guerra civil”. Não viveriam o suficiente para ver a pátria original “tornar-se a fábrica do mundo, o maior consumidor de bens de luxo e a segunda economia mundial”.
Instalam-se ambos na Península Malaia. Vão viver no campo, “às margens de rios amplos e barrentos”. Um deles mantinha uma venda, o outro era professor rural. Um capítulo detém-se na figura de uma das avós, na verdade madrasta de sua mãe. Nascida em uma aldeia na selva malásia, em uma família sem recursos, algumas realidades cedo se impuseram sobre ela: nunca frequentaria uma escola, começaria a trabalhar ainda muito jovem e teria de se casar com o primeiro homem aceitável que se apresentasse.
Na escola pública malásia onde o autor estudou na década de 1980, os alunos eram “parte de um processo de formação da nação”, cujos pais “acreditavam em um projeto comum de construção do “eu”, da sociedade, do país”. Eram todos eles “filhos dos que passaram privações, nascidos em um país que nunca antes produzira uma burguesia”. Tash Aw pertence à geração que testemunhou o desenvolvimento industrial e tecnológico da Malásia. Quatro décadas depois, importante elo na cadeia global de semicondutores, o país está a um passo de se consolidar como nação de alta renda.
Descendentes de imigrantes tendem a “criar narrativa de trajetória positiva, com alguma dose de sofrimento bem-apresentado, naturalmente superado, que valorize a ascensão ao conforto, ao sucesso e à felicidade”. Conflitos entre etnias, religiões e classes sociais são vistos como menores e relativos ao passado. Membro de uma etnia minoritária, Tash Aw entende ser preciso “provar que você é trabalhador e útil para a sociedade, mas não a ponto de se tornar uma ameaça; então você desvia atenção da sua pessoa”.
Estranhos em um píer é um texto muito rico. Trata, em poucas páginas, do processo de urbanização, do surgimento da prosperidade em um país que se modernizou rapidamente, e do fosso assim criado entre gerações mais novas e mais instruídas e as anteriores ou as que permaneceram rurais. Ir de Kuala Lumpur à aldeia, para visitar parentes, significava para o autor esconder os livros que estava lendo e modificar a maneira de falar. Sua irmã, “mais determinada a escapar” daquela realidade familiar, sente-se menos constrangida e pratica abertamente “caligrafia chinesa e gramática francesa”.
Tash Aw hoje mora no sul da França; visita os pais com frequência na Malásia, onde é uma celebridade. Em uma das vezes em que almoçamos juntos em Kuala Lumpur, comentei que Estranhos em um píer me permitira aprender mais sobre seu país do que qualquer volume de história ou de sociologia.
Mas o livro vai além. Como toda obra autobiográfica verdadeiramente literária, ilumina o processo de conscientização, por um ser humano, de sua individualidade.
Ary Quintella, diplomata de carreira, foi embaixador na Malásia até fevereiro de 2025. Publicou, em novembro de 2024, o livro “Geografia do tempo”
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.