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Recebo em Luanda, em 31 de março, dois livros que me envia de presente o primeiro-ministro da Malásia, Anwar Ibrahim.
A primeira vez que o visitei, em dezembro de 2020, Anwar Ibrahim era líder da Oposição no Parlamento malásio. Recebeu-me em seu escritório pessoal em um bairro residencial de Kuala Lumpur. Mostrou-me uma estante onde eram expostas recordações dos anos em que esteve preso, condenado por motivos políticos. Entre os objetos, figuravam vários livros que as autoridades malásias de então haviam permitido a ele ler no cárcere. Fotografei alguns desses volumes. Havia, entre outros, uma edição de “Os ensaios” de Montaigne; a biografia de Barack Obama por David Remnick; “A vida dos grandes compositores”, por Harold C. Schonberg, livro de que gosto particularmente. Na foto que tirei, aparece apenas um romance, “O sol é para todos”, de Harper Lee. Em nossa conversa, o futuro primeiro-ministro citou Ortega y Gasset.
Poucos dias antes de abrir, em Angola, o pacote contendo os presentes de Anwar Ibrahim, eu recebera um telefonema do ministro das Relações Exteriores da Malásia, Mohamad Hasan. Conversamos como bons e velhos amigos que somos.
E hoje, enquanto escrevo esta coluna, leio artigo que me envia o seu autor, outro amigo malásio, Yin Shao Loong, brilhante pensador e analista das relações internacionais, sobre as consequências para a Malásia das tarifas de importação anunciadas pelos Estados Unidos em 2 de abril e revistas uma semana depois.
O Sudeste Asiático, de onde parti há dois meses, voltou assim com muita força, nesses últimos dias, à minha imaginação. De resto, parte do meu tempo livre nas últimas semanas tem sido passado comunicando a amigos daquelas latitudes que cheguei ao meu destino atual, que estou bem e que sinto saudade deles.
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Um dos livros que me envia o primeiro-ministro Anwar Ibrahim contém análise da Bienal de Veneza de 2024, organizada por Adriano Pedrosa sob o tema “Estrangeiros por toda parte”. Lamentei perder essa Bienal, a primeira sob curadoria não só de um brasileiro, mas de um latino-americano, e de um residente no hemisfério sul. Uma frase de Pedrosa me chama a atenção: “onde quer que você esteja, você sempre é, verdadeira e profundamente, um estrangeiro”.
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Para um diplomata, sentir-se estrangeiro, enquanto representa o seu país em outro, é muitas vezes uma característica do cotidiano. Um trecho da frase de Adriano Pedrosa, porém – “onde quer que você esteja” – parece possuir valor filosófico. De fato, a nossa realidade individual nunca consegue ser perfeitamente compartilhada com outros. Para cada um de nós, brasileiros, o Brasil possui um sentido pessoal, único.
Uma das belezas do Brasil é, justamente, que em um país tão vasto, tão rico e diverso culturalmente, com uma população tão numerosa e sofrendo de marcadas diferenças sociais e econômicas, desde a independência tenha predominado entre nós um sentido autêntico de nacionalidade. Esse é o verdadeiro milagre brasileiro.
Neste exato momento, relendo “Sagarana”, penso que apenas o mineiro – e diplomata – João Guimarães Rosa poderia ter descrito tão bem a realidade de Minas Gerais. No entanto, as novelas dele se passam em uma Minas Gerais diferente daquela que eu, por exemplo, tenho entranhada em mim, que é a da Zona da Mata. “Eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias”, diz Guimarães Rosa. Por isso, afirma, optou “pelo pedaço de Minas que era mais meu”.
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Quando vivemos em um país estrangeiro, nossa apreensão da realidade local é delimitada pelo bairro onde moramos, pelos lugares que frequentamos, pelos amigos com os quais convivemos, pelos jornais que lemos. Por mais que tentemos, nunca obteremos uma visão completa daquela sociedade. Ao analisar “Sagarana”, o mais brasileiro dos húngaros, Paulo Rónai, que chegou ao Brasil já adulto, comenta: “O leitor vindo de fora, por mais integrado que se sinta no ambiente brasileiro, não pode estar suficientemente familiarizado com o rico cabedal linguístico e etnográfico do país para analisar o aspecto regionalista dessa obra”.
Não quero sugerir que não é possível adquirir uma noção correta da cultura onde estamos baseados. Procurar alcançar essa percepção deveria ser mesmo uma obrigação para todo diplomata. Nos países onde servi, tive sempre muita sorte nas amizades que fiz; elas abriram o acesso para uma melhor compreensão daquelas outras realidades.
Mas também o acaso permite novas percepções. Ano passado, caminhando por um bairro de Kuala Lumpur onde eu nunca antes estivera, de repente vi um mural representando uma cena rural no interior da Malásia. Casas de madeira sobre pilotis, com telhado de palha, alternavam comg palmeiras e vegetação tropical. Em primeiro plano, um carro de boi idêntico ao que tantas vezes me transportou na infância, na Zona da Mata, ambos simples e menos aparatosos do que o de uma das novelas de “Sagarana”, puxado por nada menos do que oito bois. Associando-se às melhores lembranças da infância e da adolescência em Minas, aquele mural surgido repentinamente tornou a Malásia ainda mais compreensível para mim.
Voltando, pela imaginação, a Minas Gerais, percebi que conhecer e entender a Malásia era, também, uma forma de amar o Brasil.
O embaixador Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente no Estado de Minas. Publicou, em novembro de 2024, o livro “Geografia do tempo”
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.