
Reler Norman Mailer é sempre um prazer
Em 'O evangelho segundo o Filho', escritor recria os pensamentos de Cristo na cruz e nos convence de que Jesus poderia ser assim mesmo
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Entre os escritores modernos, um dos que mais gosto de ler é Norman Mailer. Entre seus livros, um de meus preferidos é “Os nus e os mortos”. Também gosto muito de “O evangelho segundo o Filho”, em que Mailer escreve como se fosse Jesus. Recria os pensamentos de Cristo durante as horas em que esteve na cruz, sofrendo, prestes a carregar todos os pecados do mundo.
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O autor vale-se do estilo narrativo bíblico e nos convence de que Jesus poderia ser assim mesmo. Vejamos:
“Minhas pernas pareciam não me pertencer e, a cada passo, tornavam-se mais pesadas.
Ao chegarmos ao jardim de Getsêmani, ordenei aos discípulos:
– Sentem-se. Vou rezar.
Escolhi Pedro, João e Tiago para me acompanharem e penetrei no horto, subindo a pequena elevação que havia ali. Era como se meus membros pertencessem a outra pessoa, eu mal conseguia me mexer.
– Vigiai – recomendei aos três. Especialmente a Pedro:
– Não caia em tentação.
Nem eu mesmo sabia o porquê de tal aviso, mas minha alma estava mortalmente pesarosa.
Longe de suas vistas, desabei sobre o frio solo e chorei pedindo que aquela hora passasse de uma vez, amenizando minha angústia. Com a fronte porejando sangue gritei:
– Pai, afasta de mim esse cálice.
Mas a miséria me pertencia; o poço não tinha fundo. Súbito, cheio de autocomiseração, tive medo de meu Pai e ergui-me, clamando por Ele:
– Que não seja como quero, e, sim, como Tu queres.
Em seguida, retomei o caminho de volta aos três apóstolos e os encontrei dormindo. Ralhei:
– Pedro, não conseguiu vigiar nem por uma hora?
Seu rosto revelava um terror tão grande quanto o meu. Pois, na hora da covardia, o que faz um homem forte senão cair no sono? Ele me jurou lealdade, garantindo que montaria guarda. Desculpei-o, dizendo: às vezes, o espírito está pronto, mas a carne é fraca.
Tornei a afastar-me e, longe deles, senti nas flores o aroma da traição. Na volta, surpreendi-os dormindo de novo e disse: – Basta. Eis que a hora é chegada.
Mal acabara de pronunciar essas palavras, Judas surgiu, caminhando direto na minha direção, acompanhado por guardas do Templo e soldados romanos. Diante de mim, ele parou, disse “Mestre” e me beijou. Foi então que eu soube que ele também me amava, e muito mais do que poderia admitir. Mas não era tanto.
Seus lábios ardiam de febre. Com certeza dissera aos guardas: “Aquele a quem eu beijar é o que afirma ser o Messias”.
Imediatamente, deitaram as mãos em mim. Pedro sacou a espada e cortou a orelha de um servo do Sumo Sacerdote. O pobre cobriu-se de sangue, mas eu lhe disse:
– Não sofra mais.
Tocando nele, o curei. Perguntei seu nome e ele me respondeu: Malcos.
Os soldados romanos permaneceram calados e não o socorreram – eles não o fariam a um judeu – mas recuaram quando sarei a ferida.
– Vieram prender-me como um salteador? – perguntei aos guardas do Templo. Ao ouvir isso, eles me agarraram. Tiago e João fugiram. Pedro também sumiu. Assim, cercado pelos romanos e guardas do Templo, entreguei-me sem resistência.”
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.