Minas reconhece pessoas trans. E BH as restringe
Minas avança no texto. Belo Horizonte recua no plenário. E é nesse intervalo, entre o que se promete e o que se vive, que a violência se torna possível
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A violência que matou Alice Martins Alves, após ser espancada em Belo Horizonte, iluminou o paradoxo mineiro: enquanto o estado construiu normas pioneiras de reconhecimento às pessoas trans, a capital consolida um ambiente político que limita direitos e acelera projetos de caráter restritivo. O avanço institucional esbarra em um plenário que caminha na direção contrária.
Minas Gerais ergueu, ao longo da última década, um dos arcabouços mais consistentes do país para o reconhecimento de pessoas trans. Desde 2017, garante o uso do nome social na administração pública; instituiu a Carteira de Nome Social; e, em 2023, tornou gratuita a retificação de nome e gênero em cartórios. Na rede estadual de educação, há norma que assegura o nome social de estudantes. No papel, o estado se adianta a federações que nem sequer iniciaram esse debate.
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Belo Horizonte, porém, produz um contraponto. A Câmara Municipal consolidou uma das maiorias mais conservadoras entre as capitais brasileiras, composta por vereadores alinhados a pautas de costumes e fortalecida por bancadas religiosas e grupos de direita que ganharam fôlego nas eleições de 2020 e 2024. Nesse ambiente, projetos voltados à população trans esbarram em resistências constantes, enquanto iniciativas de caráter restritivo avançam com fluidez.
A contradição se agrava quando se observa o histórico eleitoral recente. Foi a capital que fez de Duda Salabert (PDT) a vereadora mais votada de BH em 2020. Foi Minas que a elegeu uma das primeiras deputadas federais trans do país, ao lado de Érika Hilton (Psol-SP). Hoje, a mesma Casa que ajudou a projetá-la nacionalmente opera na direção oposta às pautas que ela representava.
A tramitação dos projetos traduz essa guinada. O PL 390/2025, que determina a divulgação anual de dados sobre violência contra pessoas trans e travestis, de autoria de Juhlia Santos (Psol) e outros parlamentares, foi aprovado em comissão, mas segue sem previsão de votação. Propostas similares repetem o percurso: avançam timidamente nas comissões técnicas e travam quando dependem da maioria política.
Enquanto isso, medidas restritivas tramitam em ritmo muito mais acelerado. A Câmara aprovou, por 26 votos a 13, o PL 400/2022, que autoriza templos religiosos e escolas confessionais a definirem o uso de banheiros conforme o “sexo biológico”. O debate em plenário teve forte carga religiosa. A autora, vereadora Flávia Borja (DC), citou Gênesis 1:27 e classificou a medida como expressão da “liberdade religiosa”.
A mesma lógica se impôs no esporte. O PL 591/2023 permite que entidades esportivas adotem o critério de “sexo biológico” em competições, o que, na prática, exclui atletas trans de disputas oficiais na capital. O avanço reforçou a percepção de que a pauta de costumes se tornou eixo central da legislatura, mesmo diante de alertas de inconstitucionalidade e de violação às diretrizes nacionais do setor.
Outros projetos seguem a mesma trilha: propostas para impedir a transição de gênero de menores de idade, vedações ao uso de linguagem neutra e iniciativas que buscam expandir o “sexo biológico” como critério regulatório. Considerados em bloco, revelam um plano de ação claro da maioria parlamentar.
Nos bastidores, vereadores e servidores descrevem desgaste crescente. Parlamentares afirmam que Juhlia Santos “é a que mais toma ar” na Câmara. Ela concentra os projetos de maior impacto político, enfrenta sozinha a base conservadora e absorve ataques e pressões constantes. O cenário lembra a legislatura anterior, quando Duda Salabert dividia o plenário com Nikolas Ferreira (PL), deputado mais votado da história de Minas. A diferença é que o ambiente atual é mais consolidado e mais hostil.
As comissões também se tornaram campo de disputa. Projetos de acolhimento, prevenção ou monitoramento permanecem meses presos em diligências, pedidos de informação ou debates regimentais. Já propostas classificadas como “ideológicas”, segundo alguns parlamentares, avançam com velocidade, sustentadas por discursos de impacto e mobilização direta das bases eleitorais.
O contraste entre avanço normativo e retrocesso político ganhou contornos dramáticos neste mês com a morte de Alice. A Polícia Civil investiga se houve motivação transfóbica. O caso mostra como a proteção escrita nem sempre encontra respaldo no cotidiano e como a disputa política pode amplificar vulnerabilidades já existentes.
O impasse é evidente. Minas avança no texto. Belo Horizonte recua no plenário. E é nesse intervalo, entre o que se promete e o que se vive, que a violência se torna possível. Alice apenas revelou aquilo que os números ainda tentam alcançar: o estado reconhece, mas a capital restringe.
Balançou
Aliados do senador Cleitinho Azevedo (Republicanos) admitem, em voz baixa, que a citação do deputado federal Euclydes Pettersen, presidente do Republicanos em Minas, em investigação da Polícia Federal sobre blindagem de um esquema de fraudes no INSS, acendeu um alerta no núcleo da campanha. Pettersen é o principal articulador da candidatura do senador ao governo de Minas em 2026, responsável por abrir portas no interior e traduzir o discurso do “novo conservadorismo mineiro” em estratégia eleitoral. A avaliação interna é de que o episódio não derruba o projeto, mas balança a candidatura no momento em que Cleitinho tenta consolidar apoios e fortalecer a narrativa de “ficha limpa” que sustenta seu capital.
Não tinha assinado
Euclydes Pettersen não assinou o requerimento da CPMI do INSS. O pedido, protocolado em maio, reuniu inicialmente 223 deputados e 36 senadores, chegando depois a 248 deputados e 44 senadores. Entre os signatários originais do Republicanos estão 20 deputados e quatro senadores, entre eles, Cleitinho. Em Minas, Lafayette de Andrada e Samuel Viana aderiram ao requerimento; Pettersen e Gilberto Abramo ficaram de fora.
Silêncio
A coluna procurou alguns parlamentares do Republicanos, que, em reserva, afirmaram que a orientação é deixar o caso “esfriar”. Avaliam que não é o momento de apontar dedos nem de produzir novos embaraços enquanto a operação ainda reverbera.
Articulado
Mesmo às voltas com outras polêmicas recentes, como suspeitas envolvendo articulações políticas com entidades do setor agro e operações que miraram aliados próximos, Pettersen continuava sendo visto como um dos nomes mais habilidosos do partido. Nos bastidores, lembram que ele seguia com trânsito livre no Centrão, inclusive liderando articulações na Câmara dos Deputados.
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Abramo
Vale chamar atenção para Gilberto Abramo, também do Republicanos e igualmente ausente no requerimento da CPMI. Na sombra do desgaste de Euclydes, é ele que segura as rédeas do partido em Minas, assumindo a linha de frente nas articulações internas. Nos bastidores, é tratado como um dos quadros mais afinados ao comando nacional e muito próximo do presidente da Câmara, Hugo Motta.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
