COP30 em Belém pode acordar a Cobra Grande adormecida
Faltando uma semana para o início da conferência do clima na Amazônia, crendice popular ganha destaque em mostras culturais na capital paraense
compartilhe
SIGA
Existe uma lenda, contada pelos ribeirinhos e povos da floresta, que sob os pés da agitada metrópole de Belém, onde o asfalto da Avenida Presidente Vargas se entrelaça com as águas barrentas do Rio Guamá, dorme um ser ancestral que pulsa como o coração da Amazônia. Trata-se da Cobra Grande, ou Boiúna, como é carinhosamente chamada pelos antigos: é o espírito guardião das florestas e rios, uma sucuri colossal que se enrosca nas profundezas da terra, entre a Basílica de Nazaré e a Cidade Velha.
Sua cabeça repousa sob a grandiosa igreja que abriga a Catedral da Sé, enquanto a cauda serpenteia entre os casarões coloniais do Centro Histórico, criando sulcos que, segundo os mitos indígenas, deram origem aos igarapés e rios da região.
Dizem, que se ela acordar do sono profundo, a serpente gigante vai se mover de seus sonhos milenares e deixar rastros de água e mistério. Por fim, a sucuri vai destruir toda a vida sobre a terra em uma referência clara à crise climática que serve de aviso para afirmar que a Amazônia não é apenas floresta, mas um vasto corpo vivo, navegando entre o visível e o invisível.
Essa narrativa, tecida por povos indígenas como os tukano e os mbyá-guarani, ganha nova respiração nesta semana, às vésperas da COP30, a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas que Belém sediará de 10 a 21 de novembro. Dois espaços de cultura recém-inaugurados mergulham no imaginário da Cobra Grande, transformando-a em símbolo de resistência ecológica e cultural.
Bem ao lado do Vila Galé Collection Amazônia, que será inaugurado nesta sexta-feira (31/10) e no coração revitalizado do Porto Futuro II, o complexo portuário que renasce das cinzas industriais do passado, esses espaços convidam visitantes a navegar pelas energias ancestrais que fluem pelos rios amazônicos – energias que sussurram alertas sobre o desmatamento e clamam por harmonia com a natureza.
Leia Mais
O Museu das Amazônias: um portal para os saberes da floresta
Ao se aproximar do Museu das Amazônias (Musa), instalado no histórico Armazém 4A do Porto Futuro II, em Belém, o visitante é hipnotizado por uma fachada que pulsa como um ser vivo: o monumental mural coletivo "A Serpente é um Corpo que Une Mundos". Criado por 16 artistas pan-amazônicos, essa obra transformadora cobre as paredes externas, entrelaçando cores vibrantes – vermelhos terrosos, verdes florestais e dourados aquáticos – em formas sinuosas que evocam a Cobra Grande, a Boiúna adormecida sob a cidade.
Mais que uma pintura, o mural é a inspiração viva do edifício: o traçado arquitetônico segue fielmente a figura da serpente, com curvas que guiam os bancos, as rampas e até a identidade visual do museu. Projetado pelos escritórios Guá Arquitetura e be.bo., o espaço sinuoso convida a uma jornada imersiva, unindo o corpo da cobra aos ritmos da floresta – rios que serpenteiam, espíritos que sussurram e mundos que se entrelaçam em harmonia ancestral.
Aqui, a serpente não é monstro, mas guardiã: ela desperta energias milenares para a COP30, lembrando que a preservação da Amazônia começa no respeito às lendas que moldam sua alma. Uma fachada que não se vê – se sente, convidando todos a navegar pelo corpo que une o humano ao sagrado. "É como se a cobra acordasse para nos lembrar que os rios são veias da Mãe Terra", explica a indígena Aline Xavante, que integra a equipe do museu.
Sebastião Salgado
A exposição "Amazônia", do fotógrafo mineiro Sebastião Salgado, é um dos pilares da inauguração do Museu das Amazônias (MAZ), em Belém do Pará, que ocorreu em 4 de outubro, como um dos legados da COP30. Essa mostra póstuma – a primeira grande retrospectiva no Brasil após a morte do fotógrafo em maio deste, aos 81 anos – reúne cerca de 200 fotografias em preto e branco, capturadas ao longo de sete anos de expedições intensas pela região amazônica. São imagens que resultam do projeto "Gênesis", iniciado nos anos 2000, no qual Salgado documentou ecossistemas intocados do planeta, com foco na floresta, nos povos indígenas e na natureza em sua essência mais pura e vulnerável.
Entre as obras em destaque estão as fotografias que retratam os rios que serpenteiam a Amazônia, como a Cobra Grande, capturadas com a maestria humanista e poética típica de Salgado. Essas imagens enfatizam a grandiosidade e a fluidez dos cursos d'água, como o Rio Amazonas e seus afluentes, que se entrelaçam à vegetação densa, formando veias vitais do bioma.
Em vários tons de cinza, preto e, branco, os rios aparecem como linhas sinuosas e espelhadas, refletindo copas imensas de árvores e nuvens carregadas de umidade – elementos que evocam os "rios voadores" (os fluxos de vapor d'água que a floresta gera e envia para o resto do continente). Uma das fotos icônicas mostra um trecho de rio largo e curvo, cercado por margens cobertas de folhagem, onde a água parece pulsar com vida, destacando a conexão inseparável entre o elemento líquido e a biodiversidade. Outra captura chuvas torrenciais caindo sobre essas vias aquáticas, transformando-as em espelhos fragmentados de gotas e névoa, simbolizando tanto a abundância quanto a fragilidade diante das mudanças climáticas.
A curadoria, idealizada por Lélia Wanick Salgado (esposa do fotógrafo) e apresentada pela primeira vez na região Norte do Brasil, não se limita às imagens estáticas: elas são acompanhadas de uma trilha sonora imersiva criada pelo músico Jean-Michel Jarre, que incorpora sons reais captados na floresta – o rugido distante de corredeiras, o gorgolejar de águas rasas e o eco de chuvas sobre as folhas.
Projeções audiovisuais e testemunhos de lideranças indígenas, como dos povos Yanomami, Asháninka e Marubo, complementam a experiência, convidando o visitante a refletir sobre a preservação da floresta e o papel das comunidades originárias. Ocupando cerca de 950 m² no térreo do museu, a exposição dialoga com a arquitetura sinuosa do espaço, inspirada nas formas de uma cobra, ecoando o movimento serpenteante dos rios.
Essa é uma homenagem não só à obra de Salgado, que sempre usou o preto e branco para transcender o tempo e revelar a alma dos lugares, mas também à identidade amazônica. A mostra fica em cartaz até fevereiro de 2026, com entrada gratuita, e reforça Belém como polo de cultura e sustentabilidade, às vésperas da COP30. Se você visitar, prepare-se para um mergulho sensorial que transforma fotos em um chamado urgente pela guarda desse pulmão do mundo.
Caixa Cultural: Espíritos da Floresta em Exposição
A poucos metros dali, na mesma doca revitalizada, a Caixa Cultural Belém – a primeira unidade da instituição no Norte do país – abriu suas portas em 9 de outubro com mostras que tecem a Cobra Grande ao tecido da arte contemporânea.
As exposições "Espíritos da Floresta" e "Paisagens em Suspensão" conectam o ativismo indígena à urgência ambiental, usando a lenda da sucuri como fio condutor. Na entrada, uma fachada monumental estiliza a silhueta da Boiúna, enroscada como uma guardiã protetora, simbolizando o renascimento do porto como espaço de convivência sustentável.
Vivemos em um mundo de disputas, moldado pela modernidade que nos impôs estilos de vida competitivos, hierarquizados e acelerados, nos quais o ser humano se posiciona como centro da existência.
Esse modelo extrativista esgota florestas, silencia vozes e projeta futuros ilusórios para evitar as responsabilidades do presente. No entanto, a Terra não suporta mais esse paradigma que insiste em separar humanidade e natureza, cidade e floresta, corpo e território, arte e vida.
A floresta amazônica, frequentemente chamada de "pulmão do mundo", não é uma natureza intocada, mas sim um território vivo, construído por relações milenares entre humanos e mais-que-humanos. Criada e mantida por seus povos originários, ela é um corpo que pensa, sente, fala, ensina e clama por socorro.
Espíritos da Floresta: MAHKU surge como uma resposta a essa crise. A exposição nasce da escuta da floresta como um ser vivo e de seus espíritos como mestres e parentes. Aqui, não estamos fora da Terra; somos a própria Terra. Mais do que uma mostra de arte, essa inauguração no coração da Amazônia marca a abertura da CAIXA Cultural Belém, a primeira unidade da instituição na região Norte.
Atravessando tempos e mundos, a exposição nos convida à florestania – o direito de pertencer à floresta – e à floresticidade – a condição de viver em profunda comunhão com ela.
Quem guia os visitantes nesse percurso é Yube, a jiboia mítica do povo Huni Kuin. Guardiã do nixi pae (ayahuasca), mestra dos grafismos (kene) e a mais importante xamã. Yube transcende terra e água, corpo e espírito, tempo e sonho.
Lendas que navegam para o futuro
As exposições destacam os espíritos da floresta – curupiras, mapinguaris e, claro, a Boiúna – como aliados na luta contra as mudanças climáticas. Painéis interativos narram como a sucuri, senhora das águas, protege os ecossistemas aquáticos, enquanto sons de tambores e cantos rituais evocam as energias que navegam pelo Amazonas, carregando lendas de equilíbrio entre humanos e natureza. Para os delegados da COP30, a Caixa Cultural não é só um museu: é um portal para entender que a preservação da biodiversidade começa no respeito aos mitos que moldaram a região há milênios.
Vila Galé Amazonas
Nesta sexta-feira, 31 de outubro, Belém do Pará ganha um novo ícone da hospitalidade de luxo: o Vila Galé Collection Amazônia. Instalado nos armazéns centenários restaurados do Porto Futuro II, às margens da Baía do Guajará, o hotel boutique representa um investimento de R$180 milhões da rede portuguesa Vila Galé, marcando sua estreia na região Norte do Brasil.
Com 227 acomodações inspiradas na cultura amazônica e homenagens a mulheres icônicas como Elis Regina, Clarice Lispector e Fafá de Belém, o empreendimento combina preservação histórica com conforto moderno, incluindo piscina ao ar livre com vista deslumbrante, um Satsanga Spa com piscina aquecida, restaurante de sabores locais e o Clube Nep para crianças. Em operação desde o soft opening em 9 de outubro, o hotel chegou a tempo do Círio de Nazaré e às vésperas da COP30, prometendo elevar o turismo sustentável e a identidade cultural paraense. Um convite irresistível à imersão na Amazônia autêntica.
Na noite dessa quinta-feira (30/11), um concerto com a Filarmônica Jovem da Fundação Carlos Gomes tocou clássicos ao lado do tenor português João Mendonza. De Tom Jobim a Frank Sinatra, a noite reuniu convidados no auditório da Caixa Cultural, que fica ao lado do Vila Galé Amazônia.
O presidente do grupo português, Jorge Rebelo de Almeida, ressaltou a integração da cultura e do turismo e a importância do incentivo aos mais jovens e os valores como sustentabilidade e responsabilidade social: “Em vivendo em um mundo estranho, enquanto tem pessoas pensando em fazer guerra, nós queremos criar um local de paz. Homenageamos as mulheres neste hotel aqui no Pará, com o início da Cop30 na semana que vem. Desejo que mulheres possam assumir mais cargos de poder e, quem sabe consertar, os erros que os homens estão fazendo”, finaliza.