‘Rota Bituca’: as cidades que moldaram Milton Nascimento
De Três Pontas a Belo Horizonte, passando pelo Rio e pit stops em Niterói e Alfenas, as cidades do cantor tecem uma tapeçaria de influências que definem a MPB
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Milton Nascimento, o icônico Bituca da música brasileira, não é apenas uma voz que ecoa o coração de Minas Gerais, mas um artista cujas raízes se entrelaçam com diversas cidades do país. Próximo de completar 83 anos, em 26 de outubro, o cantor e compositor – de hits como "Travessia" e "Clube da esquina" – carrega em sua obra as paisagens, os sons e as dores de lugares que o acolheram desde a infância.
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Nascido no efervescente Rio de Janeiro, ele foi moldado pelo interior mineiro e por passagens breves, mas marcantes, em outras capitais. Milton presenteia seus fãs com um legado nômade, porém sempre mineiro. Sua voz, um lamento suave e poderoso, carrega o cheiro de café mineiro, o barulho dos trens cariocas e o sussurro das ondas niteroienses. Aos 82 anos, aposentado de turnês mas ativo em estúdios – como no recente "Milton + Esperanza" (2024), com Esperanza Spalding –, Bituca prova que morar em múltiplos lugares não dilui raízes: elas se multiplicam. Como ele mesmo canta em "Travessia": "Da janela eu vejo o mundo passar". E que mundo rico ele construiu.
Em uma rota sentimental, não oficial, traçamos o mapa geográfico de sua vida, revelando como cada cidade contribuiu para o músico que conquistou o mundo com cinco Grammys e uma discografia de mais de 30 álbuns.
Rio de Janeiro: o berço carioca
Tudo começou na agitada Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, onde Milton Silva Campos do Nascimento veio ao mundo em 26 de outubro de 1942. Filho da empregada doméstica Maria do Carmo do Nascimento – que o registrou sozinha após ser abandonada grávida –, o futuro artista nasceu em uma pensão humilde chamada Dona Augusta, em meio à pobreza e à luta diária da mãe. A infância foi breve e marcada por perdas: aos 2 anos, Maria faleceu de tuberculose, deixando Milton órfão.
Ainda na capital fluminense, ele ficou sob os cuidados da avó e de uma madrinha, em uma casa onde a avó trabalhava como empregada. Foi nesse ambiente carioca, com suas ruas vibrantes e contrastes sociais, que as primeiras notas musicais ecoaram em sua alma. Embora curta, essa fase plantou sementes de resiliência que mais tarde floresceriam em canções como "Beco do Mota", evocando vielas e memórias urbanas.
O Rio não foi apenas berço; foi também palco de experimentações iniciais. Em 1963, Milton retornou à cidade para gravar seu primeiro single profissional, "Barulho de Trem", e participar de festivais que o projetaram nacionalmente. A efervescência cultural da Bossa Nova e da MPB carioca influenciou seu estilo único, misturando jazz e ritmos locais.
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Três Pontas: o lar adotivo e as raízes mineiras
Aos 6 anos, a vida de Milton mudou drasticamente quando foi adotado por Josino Brito Campos, bancário e professor de matemática, e Lília Silva Campos, professora de música e ex-aluna de Villa-Lobos. O casal o levou para Três Pontas, uma pacata cidade no Sul de Minas Gerais, que hoje tem pouco mais de 50 mil habitantes.
Ali, em meio às montanhas e ao café que definem a região, Bituca encontrou estabilidade e paixão pela música. Lília, com sua devoção coral, ensinou-lhe os primeiros acordes; aos 13 anos, ele ganhou seu primeiro violão, e aos 15, formou o grupo Luar de Prata com o amigo de infância Wagner Tiso. O apelido "Bituca" – dado por um tio que o via franzir os lábios como um botocudo indígena quando contrariado – nasceu nessas ruas tranquilas.
Três Pontas é o epicentro emocional de Milton. "Eu me sinto mineiro de coração", confessou ele em entrevistas. Foi ali que se apresentou em bailes regionais com o W's Boys e absorveu a melancolia das serras, que permeia faixas como "Paisagem da Janela". A cidade o homenageia com o Aeroporto Milton Nascimento e um museu dedicado à sua obra, provando que Três Pontas não é apenas um ponto no mapa, mas o solo fértil de sua identidade.
Juiz de Fora: descobertas familiares
Antes de se estabelecer em Três Pontas, Milton passou um período com a avó em Juiz de Fora, maior cidade do sudeste mineiro, com cerca de 570 mil habitantes. Após a morte da mãe, foi para lá aos 2 anos, onde a avó – viúva e diarista – o criou em um ambiente de afeto familiar ampliado. Juiz de Fora, com sua arquitetura colonial e proximidade com o Rio, serviu como ponte entre o caos carioca e o sossego mineiro. Embora menos documentada, essa fase foi crucial: foi em meio às famílias unidas da região que Milton desenvolveu o apego emocional que inspira suas letras sobre perda e reencontro, como em "Maria, Minha Fé".
Alfenas: bailes e amizades que viraram sucesso
Aos 16 anos, a família adotiva se mudou para Alfenas, outra joia do Sul de Minas, conhecida por seu carnaval animado e café premiado. Lá, morando com os Tiso, Milton se tornou crooner da banda W's Boys, animando bailes e casamentos pela região. Essa era de juventude efervescente marcou o início de parcerias duradouras: com Wagner Tiso, ele experimentou harmonias que ecoariam no futuro "Clube da esquina". Alfenas, com suas praças arborizadas e vida noturna simples, infundiu em Bituca o prazer da música coletiva, longe dos holofotes. "Foi onde eu aprendi a cantar para o povo", recordou ele. Hoje, a cidade celebra o filho adotivo com festivais anuais em sua homenagem.
Belo Horizonte: a capital que revelou o talento
Em 1963, aos 21 anos, Milton desembarcou em Belo Horizonte para estudar economia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – plano que durou pouco, graças à música. A capital mineira, com sua cena boêmia no Bar da Esquina, tornou-se o hub de sua ascensão. Ali, ele conheceu Lô Borges, Beto Guedes e os irmãos Marilton e Márcio Borges, formando o núcleo do "Clube da Esquina", movimento que revolucionou a MPB nos anos 1970. Belo Horizonte foi palco de sua primeira composição gravada e de shows que lotavam teatros. "BH é onde tudo aconteceu", disse Milton. A cidade o retribui com o Memorial Minas Gerais Vale, que abriga exposições sobre sua trajetória.
Niterói: o refúgio criativo à beira-mar
Por volta de 1972, durante a gravação do álbum “Clube da esquina”, Milton se instalou temporariamente em Niterói. No bairro de Piratininga, ele dividiu casa com Lô Borges e Beto Guedes, batizando o local carinhosamente de "Mar azul". Foi nessa praia serena, com vista para o mar, que nasceram faixas icônicas como "Lilia", inspirada em sua mãe adotiva caminhando pela areia. Niterói, com seu clima de inspiração e folga das gravações no Rio, representou um oásis criativo. "Ao fundo da foto, a casa onde praticamente nasceu o disco", postou Milton em 2021, nostálgico.
São Paulo: o salto para a fama nacional
Embora menos residencial, São Paulo marcou passagens cruciais. Em 1966, Milton competiu no Festival Berimbau de Ouro defendendo "Cidade vazia", de Baden Powell, classificando-se em quarto lugar. A metrópole paulista, polo de gravadoras e rádios, foi onde Elis Regina gravou "Canção do sal", sua primeira composição de sucesso nacional. SP acelerou sua projeção, mas sempre como contraponto à introspecção mineira.
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