De olho em 2026, Lula busca diálogo com a base evangélica
Lula intensifica diálogo com evangélicos e conta com a ajuda da vereadora de Goiânia, Aava Santiago, para diversificar interlocutores
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Com 2026 no horizonte e a popularidade ainda frágil entre os evangélicos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem ensaiado uma aproximação cuidadosa com o segmento religioso que mais resiste ao seu governo. O movimento, que combina cálculo eleitoral e esforço para reduzir resistências em um público majoritariamente bolsonarista, sinaliza uma disputa antecipada diante de um eleitorado decisivo nas urnas e que, nas últimas eleições, se firmou como um dos principais pilares da direita no país.
Segundo a pesquisa Genial/Quaest mais recente, divulgada no início de outubro, 63% dos evangélicos desaprovam o governo Lula, enquanto 34% aprovam. O índice de rejeição, que chegou ao auge em julho, quando atingiu 69%, mostra uma leve recuperação na percepção do público religioso.
No esforço de se aproximar do eleitorado evangélico, o presidente tem recorrido a vozes do campo religioso que fogem ao eixo tradicional dos grandes pastores midiáticos. Entre essas interlocuções, está a vereadora de Goiânia Aava Santiago (PSDB), que, a convite do Palácio do Planalto, vem ajudando na correção de rota, sugerindo caminhos para um diálogo mais amplo com esse segmento.
O movimento inclui ainda encontros com lideranças religiosas, como o bispo Samuel Ferreira, da Assembleia de Deus Madureira, e o pastor e deputado federal Cezinha de Madureira (PSD-SP). A estratégia conta também com a participação da primeira-dama Janja, que tem visitado igrejas e dialogado com mulheres evangélicas.
Mudança de rota
A aproximação com Aava começou ainda no ano passado, quando Lula e a primeira-dama, Janja da Silva, receberam Aava para uma longa conversa no Planalto. O encontro, que durou cerca de uma hora e meia, teve como objetivo compreender as dinâmicas internas do campo evangélico e as razões pelas quais o presidente encontra dificuldades em se conectar com essa base. A partir dali, a vereadora passou a colaborar pontualmente com integrantes do governo, incluindo o ministro da Secretaria de Comunicação (Secom), Sidônio Palmeira.
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Aava, que se define simplesmente como evangélica, sem rótulos adicionais como “progressista” ou “de esquerda”, tem defendido junto ao governo a necessidade de diversificar os interlocutores com o mundo religioso. Segundo ela, a liderança espiritual no país é muito mais plural do que sugerem figuras midiáticas, associadas à chamada “bancada evangélica” no Congresso.
“Esses magnatas da fé, que são legitimados como interlocutores do povo evangélico, correspondem muito mais aos seus empreendimentos econômicos e empresariais do que ao povo na vida real”, disse a vereadora ao Estado de Minas.
"2026 é um ano sagrado. Nós temos que fazer as coisas diferente. [...] Evangélico não é contra nós, nós é que não sabemos falar com eles. O erro está na gente, não está neles. [...] Nós nos distanciamos do povo",
disse o presidente Lula no 16º Congresso do PCdoB, no dia 16 de outubro.
À reportagem, Aava pontuou que a maioria dos pastores brasileiros vem de origens humildes, conduz pequenas igrejas e mantém forte vínculo comunitário, distante do modelo empresarial que se consolidou em torno de figuras conhecidas da televisão. Essa distinção é central na leitura que vem sendo construída dentro do governo. Aava tem ressaltado que as prioridades do público evangélico, especialmente das mulheres, passam por temas concretos do cotidiano, como creche, segurança, emprego e infraestrutura nos bairros, e não por pautas morais restritivas que ganharam destaque nos últimos anos no Congresso.
"Eu disse pro Lula: se o senhor perguntar para qualquer missionária da Assembleia de Deus qual é a prioridade dela e der 23 segundos para responder, ela não vai dizer que é prender adolescente grávida de estuprador que quer interromper a gravidez", disse, em referência ao Projeto de Lei 1904/2024, que prevê a criminalização das mulheres ao equiparar o aborto legal ao crime de homicídio, impondo às vítimas uma pena duas vezes maior do que a prevista para os estupradores.
A vereadora também tem apontado ao entorno do presidente que parte das tensões recentes com o eleitorado religioso se deve ao avanço do bolsonarismo entre fiéis. Na avaliação dela, o fenômeno criou uma espécie de “nova religião” dentro das igrejas, ao associar fé e salvação a um projeto político. Esse movimento, argumenta, alterou profundamente a relação entre religião e política no país, impondo desafios inéditos para o governo.
“O bolsonarismo teve um poder destrutivo de vínculos comunitários muito rápido. Eu digo que criou uma nova religião dentro da igreja, um cavalo de Troia: o bolsonarismo evangélico, que faz as pessoas atribuírem a ele o próprio processo de salvação. Ouvi gente dizer: ‘você não é crente porque não vota no Bolsonaro’. E eu tive que responder: quem morreu na cruz por mim foi Jesus, não Bolsonaro”, avalia.
“Essa bolsolatria acrescentou um capítulo à cruz que não existe, porque a Bíblia é clara: a cruz é suficiente para me salvar. Se preciso me converter a uma ideologia política para alcançar a salvação, é como se a cruz tivesse seu poder esvaziado. Esse fenômeno contaminou parte da igreja brasileira e era novo para todos nós. O governo, por sua vez, estava carente de bons diagnósticos, e é nisso que tem avançado”, completa.
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Aava, por sua vez, tem sido enfática ao afirmar que pastores midiáticos como Silas Malafaia não representam a maioria dos fiéis. Para ela, embora esses nomes mantenham visibilidade e influência em determinados círculos, sua atuação está cada vez mais distante do cotidiano das igrejas tradicionais. “Ele representa hoje um segmento muito específico; ele não fala pela grande maioria dos evangélicos e não é líder político”, pontua.
A leitura é compartilhada pelo teólogo e pastor Zé Barbosa Junior. Para ele, o Planalto tem cometido o erro de repetir uma lógica vertical de diálogo, concentrada nos grandes líderes e denominações, que pouco reflete a pluralidade das bases evangélicas no país.
Pós-graduado em Ciências Políticas, o pastor avalia que a aproximação “de cima para baixo” tende a gerar uma falsa impressão de que esses líderes falam por toda a comunidade evangélica. Essa leitura, segundo ele, ignora que o voto evangélico não se move exclusivamente pela autoridade dos pastores, mas por uma série de valores e percepções morais que, nos últimos anos, sobrepuseram-se a preocupações econômicas e sociais.
Barbosa Jr. lembra que, em 2006, ao fim de seu primeiro mandato, Lula mantinha altos índices de aprovação entre fiéis evangélicos, alcançando apoio expressivo justamente porque suas políticas sociais dialogavam com as demandas concretas de comunidades periféricas. “Seus projetos de vida digna para os mais pobres atingiam, em peso, boa parte da população evangélica nas periferias e cidades menores”, avalia.
Esse cenário, segundo o pastor, começou a mudar à medida que setores conservadores da política e das igrejas deslocaram o debate público para temas de cunho moral e comportamental. O movimento teria conseguido redirecionar o olhar das bases religiosas para pautas como aborto, drogas e direitos LGBTQIAPN+, ofuscando discussões sobre políticas de redistribuição e inclusão social.
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“O povo evangélico não votou em peso em Bolsonaro por conta dos líderes maiores, mas por conta da pauta moralista, que conseguiu superar a pauta econômica, principalmente a questão de preços de alimentos e políticas públicas”, disse ao Estado de Minas.
Esse processo de reaproximação, avalia ele, não se reverte apenas com a retomada do diálogo institucional, mas exige um trabalho de base que envolva as pequenas comunidades de fé espalhadas pelas periferias urbanas e pelas cidades do interior. “Ao contrário do que muitos pensam, [as periferias] ainda não foram dominadas pelo bolsonarismo. São ‘territórios’ em disputa, com gente que vive as mazelas da sociedade, principalmente mulheres negras, que são a maioria nas igrejas pentecostais, e entende a realidade de alimentos mais baratos e direitos sociais chegando para todos”, pontua.