Leia contos do novo livro de Ney Anderson
'Apocalipse todo dia' é o título do lançamento do jornalista pernambucano, que ambienta suas histórias no Recife
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“Aluguel”
Só alugo. Isso mesmo. Não quero vender, trocar, emprestar. Somente alugar.
O preço vai variar de acordo com o tempo que desejar o aluguel.
Mínimo de duas horas. O tempo ideal para fazer um charminho em festas e eventos.
Então, pode ter certeza, ninguém vai desconfiar, lhe garanto.
Os dois meninos, moço, são obedientes e inteligentes, todos vão achar que são mesmo os seus filhos.
*
“Estendidos na areia”
Os fogos já todos explodidos, as ondas quebrando na beira da praia do Pina. Copos de plástico enterrados na areia, garrafas de champanhe jogadas como antigas lembranças de réveillons passados, mesmo tendo sido personagens acessórios da festa que acabara de acontecer. Tantas promessas, pensamentos positivos, ideias para um novo ano já com tantas expectativas. Essa criação engenhosa de alguém que pensou em dividir o tempo em anos, tornando o anterior já preso ao passado. Enquanto isso, a tentativa de fazer do novo ano algo diferente de todos os outros, já no primeiro minuto.
Na areia, corpos desfalecidos, antes tão animados, jaziam sob sol escaldante, com os dedos rígidos, imóveis, apontando para o ano novo.
*
“À luz do gesto”
Olhou pela fresta da cortina que bloqueava a luz da manhã e viu que o mundo não era mais o que conhecia. O centro do Recife amanhecendo. Ouvia-se, ao longe, as primeiras vozes do dia.
Levantou. Calçou as sandálias. Abriu a porta do quarto. Foi até a cozinha. Bebeu um copo de água. Pegou a faca embaixo do balcão e fez o gesto há tanto tempo estudado. Calculado. Premeditado.
Tinha lido em algum lugar que atitudes assim nunca são premeditadas. Erraram feio, pensou. Não comigo. Comigo? Nunca. Logo em seguida fez o que sempre queria ter feito. Para o bem de todos.
Para o bem de si mesmo.
*
“O esplendor do Capibaribe”
Às vezes, a vida é só o piscar do cursor na tela em branco, até que alguém decida digitar as primeiras letras, as primeiras palavras e frases que tentem sustentá-la em pé. Às vezes nem isso: alguém simplesmente chega e puxa o cabo da energia.
Em muitos casos, o personagem tem um cigarro na mão esquerda, um copo de uísque na outra e a janela aberta para o cenário noturno, com os pensamentos se sobrepondo ao cenário visível, quase sempre vagando por anos anteriores, nas paixões instantâneas, frágeis como átomos de desejo. Noir.
Tudo parece esse mesmo clichê de falas e ambientes, onde o essen cial sempre falta: a ação. Por isso, ela joga o cigarro fora, dá o último gole na bebida, fecha a cortina e se prepara para ousar como nunca antes havia feito. Já sem tempo, entre o salto e o asfalto, vê — por um instante — o esplendor do Capibaribe.
Sobre o autor e o livro
Nascido no Recife em 1984, Ney Anderson é jornalista, escritor, crítico literário e compositor. Editor desde 2011 do site de resenhas literárias “Angústia criadora”, publicou o primeiro livro de contos, “O espetáculo da ausência” (Patuá), em 2020. O novo livro, “Apocalipse todo dia”, é uma antologia com dezenas de histórias curtas. “Sem dó, com graça (e desgraça), Ney Anderson vai amarrando o nó das histórias (e das cordas) aos poucos”, afirma Marcelino Freire, um dos sete escritores brasileiros que apresentam o lançamento. “Ney Anderson amadurece e reinventa seu estilo, corte radical de cenas e o rigor da palavra precisa, com o destaque de personagens marcantes, que seduzem o leitor e o tornam ainda mais decisivos”, garante Raimundo Carrero.
Para o autor, “Apocalipse todo dia” reflete “o amor pelo centro do Recife e os seus personagens marginais e caóticos”. Em nota no final do livro, Ney Anderson diz que o objetivo de suas histórias “é criar dúvidas e reflexões na cabeça do leitor”. “A minha matéria-prima é o mundo por onde eu ando e observo. Fico em estado de alerta a todo instante, anotando frases que me vêm à cabeça, ouvindo e registrando conversas do cotidiano, situações que possam render boas histórias, com conflitos e por aí vai. A antena está sempre conectada. Nunca desliga”, afirma. “A minha ficção é construída assim: com as tintas da literatura sendo preenchidas pelas linhas da realidade que eu vejo, também imagino e tento transcender”, complementa.
“Apocalipse todo dia”
• De Ney Anderson
• Editora Patuá
• 120 páginas
• R$ 60
• O livro pode ser encomendado no site da editora