Joaquim Arena: 'Os portugueses têm sangue negro'
Escritor de Cabo Verde ganhador do Prêmio Oceanos em 2023 resgata a história da presença negra na Europa no livro "Debaixo da nossa pele"
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Siga noAlém da língua materna, nós, brasileiros, compartilhamos com os irmãos africanos de Cabo Verde, Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe a formação enquanto nações a partir da exploração colonial de Portugal. Cada uma das colônias teve suas particularidades no processo exploratório, mas um quê em comum se estendeu para acima do Equador: o apagamento sistemático do legado de negros que, para além da escravidão, alcançaram espaços de respeito em meio à sociedade branca.
Dar luz às histórias destas pessoas, como as de João de Sá Panasco, escudeiro e nobre da corte de Dom João III, de Thomas-Alexandre Davy de la Pailleterie, general das tropas napoleônicas, ou de Abram Petrovich Gannibal, admirado pelo czar Pedro e tido como primeiro intelectual negro da Europa, foi o que motivou Joaquim Arena a escrever “Debaixo da nossa pele, uma viagem” (Gryphus).
O escritor, filho de pai português e mãe cabo-verdiana, partilha vivências opostas, por ter vivido na ex-colônia e no ex-império. Ambientando o leitor nas duas perspectivas, Arena promove um road movie literário, que mescla ensaio e narrativa, num resgate das biografias destes célebres negros - e também do próprio autor.
Em entrevista, o escritor, que participou da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), detalhou o processo de criação da obra, os meandros em que se aventurou nesta viagem, e opinou sobre o contraditório aumento da xenofobia e racismo em Portugal e outros países europeus, pois, como o autor diz, apesar deles próprios relutarem, “os portugueses têm sangue negro”. Leia, a seguir, a entrevista de Joaquim Arena ao Estado de Minas.
Partindo da perspectiva histórica das colônias, muitos negros importantes para a formação dos países foram apagados dos registros, e o pouco que sobreviveu muito se deu pelo enorme contingente de escravizados trazidos para cá, e que perpetuaram histórias pela tradição oral. Na Europa, em especial em Portugal, onde os negros foram uma minoria da população, como se deu este apagamento? E como foi o processo de resgatar essas memórias?
Por incrível que pareça, tudo começou com um brasileiro, um pesquisador de música tradicional chamado José Ramos Tinhorão (1928-2021). Ele foi a Portugal no final dos anos 1980 pesquisar nos arquivos e publicou um livro que se chama “Os negros em Portugal: uma presença silenciosa”. Quando conheci a obra numa feira do livro pensei: “O quê? Negros em Portugal?”. Achei que falaria de cabo-verdianos, de angolanos e de moçambicanos. Lendo, descobri que era sobre negros nos séculos 16 e 17, algo que eu nunca tinha ouvido falar. Passei a noite toda lendo e falei: “Meu Deus, isso foi como no Brasil”. Ou seja, Lisboa era uma pequena Bahia. Tinha bairros de negros. E depois eu vi imagens daqueles azulejos portugueses da parede que tinham ainda imagens de 400 anos atrás com criados negros. Isso coincidiu com o final dos anos 1980, época que surgiram pesquisadores da França, da Espanha e de Portugal, que mergulharam neste tema pelo ponto de vista acadêmico. Eu achei muito interessante e pensei que alguém teria que escrever sobre isso.
No livro do Tinhorão falava de duas aldeias no Alentejo, que é uma província do sul de Portugal, onde ainda existiam descendentes de escravos. Falei: “Como é possível? Eu tenho que ir lá”. Passei quase uma semana em duas aldeias, falando com as pessoas, olhando e observando muito, o que me serviu de base. Engraçado que aquela gente não quer falar nisso. Aquela gente acha que é portuguesa. “Não, não, a gente não tem sangue negro, não”. Claro que eles não sabem, não é? Pesquisei também na internet e em livros, e em trabalhos que não foram publicados em português. Então, parti para a escrita.
Um outro objetivo (do livro) foi o seguinte: antes do século 19, antes dos impérios coloniais chegaram na África, o homem negro existia na Europa. Não tinha esse componente de desumanização, que surge no início do século 19 para justificar o papel do homem branco. “A gente vai para a África cristianizar, civilizar esses selvagens, portanto, eles não têm alma”. É o chamo de desumanização do homem negro, retirando todas as suas características para justificar o trabalho do branco europeu. Que vai e leva a salvação, e leva consigo o inferno, leva os anjos, leva Cristo, leva o pecado. Eu quis com esse livro provar que antes dessa realidade, o negro estava na Europa. Havia negros que eram estudantes, universitários e professores. Shakespeare tem peças, como “Macbeth”, que fala de negros. Os negros vêm desde o antigo Egito, isso não é uma novidade. Só que depois da colonização, quando o europeu vai para África colonizar, aí matou completamente o negro e esvaziou o negro da sua humanidade.
Você citou a viagem que fez para o Alentejo e, somado a isto, tem a ideia de que "Debaixo da nossa pele" é um road movie literário, com passagens entre personagens históricos e experiências pessoais suas. Como foi fazer esta viagem entre ensaio e ficção? E como você fez para definir os limites entre a realidade e a sua criação?
Eu parti para esse livro sabendo que ia ser uma coisa bem complicada, porque eu queria falar dos negros na Europa desde há 400 anos. E queria falar também dos cabo-verdianos, do meu povo, em Portugal e também na América, porque nós temos meio milhão de cabo-verdianos que emigraram ao longo do tempo para os Estados Unidos. São vários assuntos. E eu não queria escrever um livro sobre história, porque eu não sou historiador, não sou professor de história, nem sou o Laurentino (Gomes). Eu fiz várias versões, mas cada vez que eu pegava no livro, eu metia uma autobiografia. Falava da minha família, das minhas memórias. Depois, eu falava de exemplos de negros que foram célebres generais. Imagina um negro comandando um exército de brancos - para mim era uma coisa extraordinária. E já tinha também o relato da viagem, e eu gosto muito de livros de viagem, romances de que tem o componente da viagem. E então falei para mim: "Eu não vou poder escapar, vou ter que fazer uma mistura”, ou, como os ingleses falam, um patchwork, uma manta de retalhos, mas mantendo uma estrutura coerente.
Então, parti para duas viagens: a viagem física que me levou a essas duas aldeias, numa caminhada de mais de 10 horas para conhecer os lugares onde trabalharam esses negros, na cultura, no cultivo do arroz, e um outra viagem no tempo, na história, evocando vários aspectos. Quer dos cabo-verdianos nos Estados Unidos, quer dos africanos no norte da Europa, na Holanda, na Alemanha, no Império Russo, e também em Portugal. No tempo dos reis, em que vários negros faziam parte da corte, eram admirados e tidos como homens inteligentes. É uma realidade que hoje pouca gente conhece, mas que esteve aí e está registrado nas (memórias das) pessoas que ficaram, nos quadros que foram pintados ou imagens que se encontram em azulejos. Ou em referências, como as do José Ramos Pimentel, que publicou uma espécie de Bíblia para quem quer saber e conhecer a história dos negros na Europa.
Durante o século 16, a partir de 1520, a população de Lisboa tinha 10% de negros - homem e mulheres. Tinha escravo, tinha liberto, tinha vendedor, tinha caiador, tinha estivador. Tinha negro brigão, guarda-costa. O que aconteceu foi que, ao contrário dos Estados Unidos, onde teve a segregação, em que negros e brancos não se casavam e não procriavam, se mantendo separados até hoje, em Portugal não teve isso. Negro foi se casando com negra, mas também com branca, e vice-versa. E ao longo dos séculos foi se misturando. Os portugueses têm sangue negro. Mas, nessa época, tinha bairro negros, onde só moravam negros.
Apesar deste sangue negro, Portugal tem vivido uma perseguição a imigrantes, a partir do avanço da extrema-direita, e as maiores vítimas tem sido, justamente, africanos e afro-brasileiros. O que não é exclusivo de lá, pois vários países europeus e americanos passam por um cenário semelhante. Como você tem visto este aumento da xenofobia nas terras lusitanas?
Digamos que a princípio, a lógica desses movimentos de extrema-direita, é sempre igual em qualquer parte do mundo. Você tem que encontrar o bode expiatório, o mais fraco, alguém na sociedade para tomar a culpa. Isso é um elemento do populismo, que necessita eleger uma parte da sociedade como responsável por algum mal. Isso há muitos anos. É só lembrar que no final dos anos 1920 e na década seguinte, Hitler fez o mesmo com os judeus. Eles foram eleitos como os culpados da miséria e do desastre da Primeira Guerra Mundial, e depois da situação calamitosa e da desgraça que caiu sobre os alemães. E agora, sempre que se tem uma subida da extrema direita, se elege o imigrante (como o mal). O Trump elegeu o imigrante ilegal, montou uma equipe de caça que parece a Gestapo. Uma equipe que procura e retira gente das suas casas, mete no avião e expulsa do país.
É uma forma de conseguir votos através do caos. Antigamente, o caos era uma arma dos insurgentes, dos anarquistas, dos rebeldes, que estavam na margem. Você causava o caos através da guerrilha. Você era extremista, extrema-esquerda, comunista. E aí você reivindicava qualquer coisa, mas nunca chegava no centro. Ou os governos te dava o que você queria, ou dava um pouco e você calava. Agora o caos está no centro. O caos está no centro da vida. Trump é o caos. O caos é a mentira. E a mentira é negar, é falar uma coisa hoje e outra completamente diferente amanhã - e com todo o descaramento. No mundo das redes sociais, a mentira circula com uma velocidade impressionante. Não há tempo para mandar parar tudo e ver o que é verdade e o que é mentira. Simplesmente se aceita.
Nós estamos entrando num momento da história em que parece que as democracias estão ficando em minoria, e já não respondem às ambições das pessoas, de emprego, de uma boa vida. Tudo o que foi prometido não foi dado. E agora, as pessoas vão tentar seguir aqueles que têm uma posição de ruptura com o sistema. Vocês (brasileiros) também viveram isso, não é? E no fundo é o caos. E essa é a nova arma dos que querem o poder. É através do medo, o que, no fundo, é aquilo que Hitler fez nos anos 1930 na Alemanha.
Sobre o autor
Joaquim Arena nasceu em 1964 na Ilha de São Vicente, em Cabo Verde. Emigrou para Portugal com seis anos e se formou em Direito, em Lisboa. Fez carreira em terras lusitanas como músico e jornalista. De volta à terra natal, onde vive atualmente, foi, entre 2017 e 2021, conselheiro do então presidente Jorge Carlos Fonseca. Além de “Debaixo da nossa pele, uma viagem”, publicou ainda livros como “A verdade de Chindo Luz”, “Para onde voam as tartarugas”, “O sabor da água da chuva e outras memórias da amiga perfeita” e “Siríaco e Mister Charles”, que teve edição no Brasil em 2022 e foi vencedor do Prêmio Oceanos - uma das mais prestigiadas premiações para literatura em língua portuguesa - em 2023.
Trechos
“O quadro retrata ainda portugueses dignos, fidalgos, uns apeados, outros a cavalo, trajando de negro. Dois meirins conduzem um negro embriagado dali para fora, pormenor referenciado por Leopoldina, na conferência, pois a perdição pelo álcool levara a Câmara Municipal de Lisboa a proibi-los de beber vinho nas tabernas e mesmo de frequentá-las. Um círculo perigoso, já que o vício levava ao furto do dinheiro para comprar mais vinho, quando o escravo estava absolutamente proibido de ter dinheiro ou mesmo de possuir qualquer bem.”
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“Nestes seus últimos anos, o velho general negro é atormentado pelo pálido Tsarevich Alexei — que lhe aparece em sonhos, numa camisola de dormir de um branco imaculado —, pela sua morte prematura depois de acusado de traição e nas implicações de Pedro e do velho Tolstoy no processo. Lamenta também nunca ter sido capaz de confrontar o czar sobre o paradeiro do seu irmão, «Alexei», e o seu súbito e misterioso desaparecimento, logo após o casamento forçado com uma jovem serva, aos 20 anos. À noite, os destinos trágicos dos dois jovens — as únicas crianças com quem partilhou brincadeiras na Rússia — giram na sua consciência, como dois astros errantes e sem luz.”
“Debaixo da nossa pele, uma viagem”
• De Joaquim Arena
• Gryphus Editora
• 224 páginas
• R$ 79,90