LITERATURA

Elaine Vilar Madruga mescla realismo mágico e horror em 'O céu da selva'

Romance de autora cubana discorre sobre os males da sociedade contemporânea, como machismo, etarismo, prostituição e dependência química

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Em sua epiderme, “O céu da selva” apresenta uma trama em que uma idosa, suas duas filhas e o companheiro de uma delas precisam saciar a fome de uma selva carnívora por meio do sacrifício de crianças, as chamadas “crias”, nascidas das relações dessas personagens, que habitam uma fazenda de um país caribenho não especificado, e de pessoas vindas de outras regiões que passam pelo local. Em retribuição, a mata fornece animais, como galinhas, e outros itens básicos para a sobrevivência dos seres humanos. E assim, o ciclo se repete. Já nas camadas internas de seu tecido, a história que une elementos de realismo mágico e horror é repleta de reflexões calcadas em temas como machismo, etarismo, prostituição, dependência química e meio ambiente.

Cultuada no Brasil pela primeira vez por “A tirania das moscas” (Editora Instante, 2023) – romance que alude a ditaduras latino-americanas –, a cubana Elaine Vilar Madruga, de 36 anos, optou por construir a narrativa de cada capítulo de “O céu da selva” (também lançada pela Instante) sob o ponto de vista de uma das personagens, com doses homeopáticas do sofrimento e da solidão que as afligem.

Todas as subtramas e críticas sociais e ambientais são bem conectadas à simbiótica (e nociva) relação entre fazenda e selva que conduz a história, em uma narrativa tão voraz quanto o apetite da mata – o que denota uma espécie de vingança da natureza contra a humanidade, em uma referência às contantes mudanças ambientais em várias partes do planeta, provocadas pela mão do homem. No entanto, cada habitante parece ter uma “selva” dentro de si, haja vista a ira de seus pensamentos e suas atitudes.

As mulheres são as principais personagens da trama e dos temas ali presentes. Um deles relaciona envelhecimento com sexualidade e maternidade. A vovó das “crias”, chamada no livro simplesmente de “velha” – o que já significa uma crítica dentro da própria narrativa adotada por Elaine –, deixou de procriar com o passar dos anos, ou seja, não tem mais serventia para a selva, que altera sua coloração – do verde para o vermelho – sempre que sua fome chega a um nível alarmante.

Para que os habitantes da fazenda continuem a fornecer crianças à selva, a velha passa a “missão” para as filhas, Santa e Ananda. A primeira desempenha esse papel, tendo Lázaro como companheiro – a outra, passa a se comportar como uma cachorra, devido a um drama pessoal. À medida que vai envelhecendo, Santa se sente cada vez mais desprestigiada pelo homem, que se interessa por Romina, mulher mais jovem – e viciada em drogas – que chega à fazenda e se torna objeto de cobiça de Lázaro.

A maternidade enfatizada nas figuras da velha, de Santa e de Romina está diretamente ligada à selva – mãe-natureza – por aspectos que transcendem a simples relação de sacrifício das crias. Selva, inclusive, que ganha conotações até religiosas, chegando a ser chamada de deusa e de demônio. No decorrer das 240 páginas do romance, os leitores vão se deparar com muitos outros episódios que vão além das aparências e refletem tantos males da sociedade. O realismo mágico vai se tornando cada vez mais realista. E, como a própria autora diz, em entrevista ao Pensar, a qual você confere a seguir, a “selva é toda a violência humana”.


Em “O céu da selva”, você criou um ambiente que mistura terror e suspense, construído de diversas maneiras, e ele se entrelaça com críticas à sociedade, em temas como machismo, pobreza, abandono, problemas ligados à maternidade, dentre outros…

Me interessa que a literatura sempre contemple o real, que parta do princípio da verdade e que seja capaz de olhar criticamente as dores propícias: as escaladas dos conflitos políticos, os territórios empobrecidos, as diferentes faces da solidão, a relatividade do poder, o dano antropológico do patriarcado e as maternidades forçadas. Quando escrevi “O céu da selva”, pensei em construir um corpo metafórico por meio da ficção que me permitiu falar da América Latina, embora sempre tenha a intenção de falar não apenas de nossas realidades continentais, como explorar também fora de nossas fronteiras e olhar de cara para o mundo. Os temas que o romance aborda não são apenas latino-americanos. A violência, por exemplo — em suas múltiplas formas — é um mal sistêmico da humanidade e está tão presente nos países latino-americanos como nos europeus. A selva e a fazenda são metáforas do mundo em que vivemos, um espelho de nossas fobias e nossos preconceitos, do que somos. A literatura tem o compromisso de confrontar os leitores com seus medos e suas esperanças, agitar o mundo, ser dissidente dos sistemas de poder.

Muita gente sinaliza o realismo mágico como algo intrínseco à literatura latino-americana, em países como México, Chile, Brasil, Colômbia, Argentina, Peru etc. “O céu da selva” também bebe dessa fonte, certo?

O realismo mágico está presente no tutano dos ossos de minha escrita e também deste romance, só que não se apresenta convencionalmente; é um realismo mágico deteriorado, grotesco por momentos, obscuro como a alma das personagens que habitam a história. Gosto de brincar com as fórmulas preconcebidas de gêneros literários e mesclá-las ou retorcê-las até o ponto em que os leitores podem se perguntar se o que se encontra diante de seus olhos é um texto realista, de terror, não mimético ou do mais puro realismo mágico. Penso que é isso tudo de uma vez, uma junção de influências e gêneros literários. O realismo mágico é também um posicionamento anterior à vida, uma maneira de observar e compreender o mundo, uma predisposição genética para a contemplação e a apreciação da realidade. Eu mesma nasci e vivi boa parte da minha vida em uma ilha que tem muito de realismo mágico, de absurdo, distopia e utopia de uma só vez.

A selva tem um papel crucial na trama, até mesmo como personagem central, por vários motivos. Como foi construir a narrativa em torno dela e das personagens relacionadas a ela? A selva, aliás, é vista pelas personagens como deus, diabo, céu, fantasia, causa do mal etc.

Cada vez que um território ocupa um lugar tão importante em minha narrativa, há um nervosismo muito genuíno, porque os interesses do leitor se deslocam de espaço e atmosfera (tão importantes, por exemplo, na literatura de terror) para se concentrar na noção de personagem. Neste romance, obviamente, a selva não é um território solo, é também vida e fúria, princípio do bem e do mal, alfa e ômega e também um pouco de deus. Um deus amoral e obscuro, capaz de sentir ternura, mas também raiva, e de mudar estados de ânimo com muita facilidade. Provavelmente a selva é a personagem mais importante, mais sinistra, mais difícil e da qual dependem o resto das personagens dentro do tecido da trama. Para Romina e suas amigas mortas, a selva é o paraíso. Para Santa, uma avó retorcida e caprichosa. Para a “Cachorra”, uma promessa de libertação. Para “a velha”, um sacrifício e uma dor no peito. Para as crias, uma boca aberta. Espero que os leitores possam encontrar uma selva própria no livro e um meio ou um lugar que a identifique.

Como ou quem seria a selva em nosso mundo hoje? E o céu da selva no mundo de hoje?

A selva é toda a violência humana, incluindo os especialistas. Os poderes desmedidos que oprimem os indivíduos em qualquer estrutura social, incluindo a família. As maternidades forçadas, os feminicídios e transfeminicídios, a violência vicária, a face impiedosa das sociedades atuais que esqueceram a ternura, as solidões, a polarização do pensamento político que nos fizeram crer que somos inimigos de outros seres humanos só por pensar diferente, a depredação social que alguns retorcidamente veem como “seleção natural”, a anestesia global que faz com que muitos prefiram fechar os olhos para não enfrentar os assuntos mais importantes do planeta e de nossa humanidade. Há selvas como medo, realidades e injustiças.

“A tirania das moscas” teve uma excelente repercussão, inclusive no Brasil. Como vem sendo esse impacto, assim como a repercussão de “O céu da selva”?

Com os dois livros tenho tido uma linda repercussão entre leitores e leitoras e na crítica especializada. Graças à “Tirania…”, fui publicada pela primeira vez no Brasil, pela Editora Instante. E agora com “O céu e a selva”… Percebo que muitas pessoas que vieram viajar comigo desde a história anterior estão embarcando nesta nova aventura. Meus livros são meus filhos, formam parte de minha carne e meu sangue, A cada romance que escrevo, amplio as lembranças do que meus textos anteriores deixaram nos leitores, e isso me anima sempre a voltar, a tentar cada vez mais criar um livro melhor e que se conecte da forma mais verdadeira com aqueles que confiam na escrita como vínculo essencial ao ser humano.

Você poderia nos contar quais os próximos passos?

No fim de 2025, será publicada na Espanha meu novo romance, “La piel hembra” (em tradução livre, “A pele feminina”), que estive escrevendo durante anos e me permitiu concentrar em um novo e complexo universo com pouco mais de 900 páginas de texto. O sentimento é de que “La piel hembra” é o resultado de um círculo de motivações e obsessões que me acompanhou durante cinco anos de trabalho. E, como todo período de vida, tem um significado especial para mim e minha literatura. Provavelmente depois me ocuparei de uma história curta, cuja ideia central me provoca muitas ansiedades. Durante o restante de 2025, compilarei uma seleção de histórias de terror de autores clássicos e contemporâneos, o que acredito que será um deleite sombrio para os paladares mais exigentes.


Trechos do livro

"O medo dele era de alguma forma o que também teríamos de vivenciar em algum momento"

"O preço da liberdade fazia com que uma mulher sem sangue entre as pernas tivesse de se levantar entre os primeiros mosquitos do amanhecer e jogar água no rosto"

"Mas a vida também te acostuma, isso é preciso reconhecer, a ter estômago forte. (,,,) Ficamos duronas e velhas aqui, aos pés da selva"

"Nesta fazenda também havia desgraçados como na cidade, porque as pessoas são más em todo lugar, porque o bodum da maldade é pior que o fedor da morte, e todo mundo sabia disso sem precisar ser uma cachorra."

Reprodução

“O céu da selva”
• De Elaine Vilar Madruga
• Tradução de Marina Waquil
• Editora Instante
• 240 páginas
• R$ 74,90

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