MEMÓRIAS ÍNTIMAS DE UMA RESSURREIÇÃO

As memórias íntimas de Anabela Mota Ribeiro

Admiradora de Machado de Assis, escritora portuguesa lança no Brasil 1º romance, "O quarto do bebê", escrito a partir da descoberta de um tumor

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“Um grande livro sobre o invisível: o vazio nas nossas casas, peças de mobília inexistentes, pessoas que não nasceram.” Assim a escritora angolana Djaimilia Pereira de Almeida apresenta “O quarto do bebê” (Bazar do Tempo), primeiro romance da jornalista e escritora portuguesa Anabela Mota Ribeiro. Dois anos depois do lançamento em Portugal, a autora arrisca outra definição. “Disse à época que era sobre ser mulher e ter um corpo de mulher. Agora dou uma resposta aparentemente diferente: digo que é sobre a relação entre uma mãe e uma filha”, afirma ao Estado de Minas. “A minha mãe literária e esta filha fabuladora que escreve e que sou eu. Gerar e nascer. Procriar. É sobre genealogia e legado”, complementa Anabela.

A partir da própria experiência com um diagnóstico e tratamento de câncer de mama, Anabela gestou o seu livro. “Prefiro dizer doença e não câncer porque se trata de um processo, do qual o câncer é o detonador”, explica. “O câncer foi uma espécie de trapaça que o corpo fez a si mesmo. E foi um primeiro vislumbre da minha caveira. Deflagra uma compreensão táctil de que somos mortais”, afirma.


Escrito em forma de diário e narrado por uma mulher que se diz perseguida pela palavra luto (“ela vem atrás de mim como uma sombra”) durante o confinamento imposto pela pandemia, “O quarto do bebê” tem passagens pungentes e outras devastadoras. “O câncer começou a ensinar-me um sentido para a minha mortalidade (...). O mais importante deste dia é constatar que não tenho medo. Não tenho medo de morrer, não tenho medo de adoecer, não tenho medo de falhar, não tenho medo de nada. Sei que sou capaz de sobrever, que quero o dia, que vou voltar à alegria”, afirma a autora do diário, que encara a escrita como “um processo libertador”. “Mas como chegar as lugares onde as palavras da escrita não penetram?”, questiona.

Autora do ensaio “A flor amarela: ímpeto e melancolia em Machado de Assis”, Anabela Mota Ribeiro insere personagens de alguns dos títulos mais conhecidos do autor de “Memórias póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro” entre as digressões de sua narradora. “Considero Machado de Assis o maior escritor de língua portuguesa. Impressiona-me não se parecer a ninguém, inaugurar uma genealogia, a sua imensa modernidade e vanguarda, os dispositivos literários tão sofisticados, ardilosos, excêntricos. Há sempre um grão misterioso, algo que não se entende. As personagens femininas de Machado são para mim as mais interessantes, espirituosas, vivas”, conta.


Nascida em Trás os Montes em 1971, Anabela está no Brasil para lançar “O quarto do bebê” com agenda iniciada na semana passada em Paraty, em mesa na programação oficial da Flip com a francesa Neige Sinno (de “Triste tigre”). Ela passou por Belém e, neste fim de semana, participa da Flipelô, em Salvador, antes de encerrar no Rio a série de conferências e encontros. Leia, a seguir, a entrevista de Anabela Mota Ribeiro ao Estado de Minas:

Na Flip, Anabela Ribeiro (E) e a francesa Neige Sinno dividiram a mesa "Tristes tramas", com mediação de Rita palmeira: "O livro de Neige mexeu com as minhas entranhas e guardei uma expressão que ela disse, a minha cólera continua intacta"
Na Flip, Anabela Ribeiro (E) e a francesa Neige Sinno dividiram a mesa "Tristes tramas", com mediação de Rita palmeira: "O livro de Neige mexeu com as minhas entranhas e guardei uma expressão que ela disse, a minha cólera continua intacta" Divulgação/Flip

Como surge “O quarto do bebê”?

O movimento de escrita deste romance foi acidental, catártico, de certo modo salvífico. Foi uma longa gestação. Eu acalentava há anos o desejo de escrever ficção, mas fui consumida pelo trabalho jornalístico, pela investigação acadêmica, pela vida de todos os dias. A doença provocou uma deslocação das placas tectônicas. Prefiro dizer doença e não câncer porque se trata de um processo, do qual o câncer é o detonador; os meses em que estive mais gravemente doente e em risco foram posteriores à tumorectomia e à radioterapia. Demoramos muito tempo a compreender a extensão do tremor de terra. Quando nos confinamos em casa, comecei a encontrar palavras para me tatear, deixei de me sentir estéril. A escrita operou um desdobramento que me permitia ver-me à lupa e de fora, encontrar-me com a minha doença num momento global de doença pandémica. Estávamos ambos, o meu corpo próprio e o corpo-planeta, doentes.

Poderíamos dizer que “O quarto do bebê” é um livro sobre perda, mas também sobre transformação?

Sim. Quando me perguntaram sobre o que era o romance, não soube responder. Era difícil (e tão pouco desejável, para mim) reconduzir o romance a um assunto. Mas aceitei que precisava de elaborar uma resposta capaz. Fui titubeante, pouco contundente: disse que era sobre ser mulher e ter um corpo de mulher. Passados dois anos sobre a publicação em Portugal, dou uma resposta aparentemente diferente: digo que é sobre a relação entre uma mãe e uma filha. A minha mãe literária e esta filha efabuladora que escreve e que sou eu. Gerar e nascer. Procriar. É sobre genealogia e legado. É sobre a transformação que se dá quando são tocados os seios ou extraído o aparelho reprodutor — que a cultura patriarcal nos inculcou como sendo sinónimos de ser mulher.


Como decidiu incluir no livro um registro diário da pandemia ou, para usar uma imagem do livro, de uma vida entre parênteses?

Presto especial atenção ao que escapa à frase e se esconde entre parênteses. Como se fosse incatalogável. A pandemia foi um longo e profundo parênteses. Colocou a vida em suspenso, na indeterminação absoluta. Foi o meu marido que me sugeriu a escrita de um diário. Escrevi-o não supondo que iria publicar. Foi a matéria orgânica a partir da qual, mais tarde, compus o romance. Pode ser que a estrutura fosse outra se não tivesse um fascínio pelo gênero. Em “O quarto do bebê”, cito outros livros que têm um registro memorialista e diarístico. Os de Machado de Assis, acima de todos. Abolir categorias e jogar na hibridez era mesmo o que eu queria.

A narradora se diz perseguida pela palavra luto. Como esse sentimento está impregnado em “O quarto do bebê”?

Luto e luta são palavras nucleares. Um luto coletivo durante a pandemia. Um luto íntimo pela morte de uma amiga que era uma outra mãe para mim. Luto do meu corpo fértil e quiçá erótico. Luto de uma mítica capacidade de gerar que me faria sentir mulher de uma certa maneira. Luto do Eu que existia antes do cisma, que não se perguntava sem disfarces: por que é que eu nasci? E luta para subir novamente na trave, ser de aço e pluma, concentrada, combatendo. Passei dias a ver no YouTube os ‘perfect ten’ da Nadia Comaneci nas Olimpíadas de 1976. Queria ter aquela tenacidade, não me permitia a derrota.

“Os delírios de uma pessoa são transbordantes”. Como transformar delírios em palavras?

Mas que é uma palavra senão a tradução possível da faculdade da imaginação? E existe terreno mais arenoso que o da memória? É um júbilo quando me sinto a vir por fora, quando o onírico ganha impressão visual e um vocabulário que o diz. O que temo são os momentos depressivos em que se estende ante os meus olhos uma terra gretada. Claro que não consigo usar a palavra delírio sem pensar no Delírio do “Brás Cubas”, que o leva ao fim dos tempos. Mais ou menos como o meu.

“O câncer começou a ensinar-me um sentido para a minha morte”, afirma a narradora. Qual o sentido que o câncer traz para o livro?

É a diferença que está na canção de Gilberto Gil entre morte e morrer. A morte pode ser (e é bom que seja, senão fica invivível) um conceito abstrato. Morrer é um verbo, determina uma ação, é um acontecimento do corpo. Não é um dia será. É um pode ser agora. O câncer foi uma espécie de trapaça que o corpo fez a si mesmo. E foi um primeiro vislumbre da minha caveira. Deflagra uma compreensão táctil de que somos mortais.

Como nasceu a sua admiração pela obra de Machado de Assis? Desde que passou a estudá-la, o que descobriu e a impressionou ainda mais? Considera que é o maior escritor da língua portuguesa? Qual legado ele deixou para o nosso idioma?

Sem dúvida considero Machado de Assis o maior escritor de língua portuguesa. Impressiona-me não se parecer a ninguém, inaugurar uma genealogia, a sua imensa modernidade e vanguarda, os dispositivos literários tão sofisticados, ardilosos, excêntricos. E há sempre um grão misterioso, algo que não se entende. Comecei por ler contos e “Dom Casmurro”. Mais tarde, na faculdade, escolhi Literatura Brasileira como disciplina de opção num outro departamento (eu licenciei-me em Filosofia). Fui aluna do professor Abel Barros Baptista, que me fez descobrir um outro Machado. Escolhi-o como objeto de estudo no mestrado. A minha dissertação foca-se no ímpeto e na melancolia nas “Memórias póstumas de Brás Cubas”.

Alguns personagens de Machado são citados em “O quarto do bebê” e o diálogo com o escritor segue até as últimas páginas. Como decidiu incorporar as criações do brasileiro para o seu livro e qual a função deles em sua narrativa? Quais os personagens de sua maior predileção?

Procurei manter um diálogo próximo com Machado e a sua galeria de personagens e assuntos. Eram também os que estavam no meu projeto de doutorado. O meu foco incide nos temas da filiação e da autoria. Uma filiação problemática ou ausente. Uma autoria dúplice, delegada em autores ficcionais, que convoca o leitor e elabora sobre o valor da escrita. De alguma maneira, também esses temas estão plasmados em ‘O quarto do bebê’. Inclusive na personagem Filha do meu Pai, que encontra o diário de Ester entre os papéis do seu pai, o psicanalista, e se permite mudar o título originalmente atribuído. Dito de outro modo, mimetizo a Advertência de “Esaú e Jacó”.


As personagens femininas de Machado são para mim mais interessantes, espirituosas, vivas. Adoro Capitu. Sinto muita pena de Eugênia, a Vénus Manca. Acho graça à têmpera de Fidélia do “Memorial de Aires”: porque enfrenta o pai e uma orfandade em vida.

Além de Machado, você cita outros ícones da cultura brasileira, como Cartola e Roberto Carlos. Como a nossa música impregna as suas lembranças e a sua escrita?

Roberto Carlos é a minha infância, o amor dos meus pais, o rádio sempre ligado. Por causa de Cartola (e Chico, Caetano, Jobim) sou Mangueira. A minha paixão pela cultura brasileira é antiga e alimentada nas vindas frequentes. Quando chego ao Galeão, canto para dentro o “Samba do avião” e procuro os urubus voando em círculo, no céu. Uma pessoa vai criando as suas impressões de estar em casa.

Quais autores contemporâneos da língua portuguesa estão entre os que admira?

Hélia Correia, Lídia Jorge, Isabela Figueiredo, Djaimilia Pereira de Almeida, Bruno Vieira Amaral, Susana Moreira Marques (de diferentes gerações).

Você citou, entre as autoras portuguesas de sua admiração, Lídia Jorge, autora de “Misericórdia”, também ambientado no período da pandemia. Consegue estabelecer conexão entre o seu livro e o romance de Lídia Jorge?

Lídia é uma amiga querida e foi uma interlocutora preciosa na construção de ‘O quarto do bebê’. O nosso diálogo fortaleceu a minha forma vulcânica e a minha insubmissão ao cânone. Foi uma forma de me dizer: não tenha medo. Na contracapa da edição portuguesa, usou expressões generosas como “estrutura estelar”, “escrita em forma de rizoma”, “experiência abissal”. A relação de cuidado com a sua mãe, no centro de “Misericórdia”, sempre me comoveu. A sombra da doença e da morte, revelada sem biombos na pandemia, tornou-nos mais vulneráveis, mas também exigiu uma coragem que não esmorece. Não naquele momento. Só depois de atravessar a selva oscura nos permitimos sucumbir e elaborar sobre as perdas. Apesar das sintonias, há uma diferença relevante: no caso da Lídia e da mãe, respeitava-se uma ordem natural das coisas. No meu caso, havia um elo da cadeia genealógica que era engolido. Eu podia ir antes da minha mãe. Para muitas pessoas, foi estranho que eu não dissesse à minha mãe que tinha um câncer. Só partilhei com os meus pais anos depois, ultrapassado o perigo. Para mim, era uma expressão de amor: poupei-a a um sofrimento atroz.

Acontecimentos da política no Brasil durante a pandemia também são registrados, inclusive o comportamento negacionista do ex-presidente Bolsonaro. O que mais a impressionou naquela época? Como vê o avanço da extrema-direita também em Portugal?

A degradação da qualidade da democracia em Portugal é tremenda, em particular depois das últimas eleições e de uma viragem acentuada à direita. Tempos sombrios para todos, no mundo. O negacionismo espelha também este tempo obscurantista e troglodita em que uma crença se baseia em si própria e prescinde da fundamentação da experiência científica.

“O melhor foi ter sentido a minha capacidade de morder”, afirma a narradora. Acredita em uma literatura capaz de ‘morder’ o leitor? Quais leituras recentes provocaram esse impacto?

A minha ferocidade, que estava muito contida, começou a extravasar. Gostaria de ser capaz de escrever sem freio. Valorizo muito a interpelação que resulta de obras que nos deixam na estranheza e no incômodo. A leitura de Camila Sosa Villada deixou-me nesse estado.

O que foi mais marcante de sua participação na Flip e dos dias em na festa literária de Paraty?

Foi um privilégio partilhar a mesa com a Neige Sinno (autora de “Triste tigre”), cujo livro mexeu com as minhas entranhas, e ter a mediação sensível e inteligente da Rita Palmeira. Os dois livros exprimem uma fala orgânica em que surge a violência sobre o corpo, uma crença no mundo que é abalada ou corrompida, a centralidade da relação entre mãe e filha. Outra sintonia: o lugar da escrita como questionamento, como cura, os seus limites. Ainda ressoa em mim uma expressão de Neige: a minha cólera continua intacta. Dói e é um motor para lidar com a vida e para o ato de escrever. Como lava incandescente. Fiquei comovida com a fala da ministra Marina (Silva). Uma pessoa é analfabeta até aos 16 anos e consegue reconstruir-se assim? Muito potente. Duas ideias me arrebataram no seu discurso: a vida é insistência e persistência; e também: não podemos usar as armas dos nossos inimigos, do Mal. Nós não somos assim.


Trecho

(De “O quarto do bebê”)

“A palavra desfeita acompanha-me. É ser ou estar menos que uma camada de pó. De que cinzas se vai reconstruir? Da filha, com certeza.

Eu vou estudar os filhos em Machado de Assis e não terei filhos. O núcleo de onde tenho de erguer a minha vida, depois da doença, depois da pandemia, depois do que há de vir e é impronunciável, é o mesmo de Machado, que não teve filhos. A escrita.”

Reprodução


“O quarto do bebê”
• De Anabela Mota Ribeiro
• Bazar do Tempo
• 248 páginas
• R$ 75

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