Belo Horizonte (1930) Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
Leônidas de Oliveira
Especial para o EM
Há homens que criam instituições. Outros, ideias. E alguns poucos fundam um olhar: aquele modo de ver que passa a moldar o que um país pensa de si mesmo. Rodrigo de Melo Franco de Andrade, nascido em 1897, um ano após a fundação de Belo Horizonte, foi um desses. Seu legado vai além da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1936, ou da sólida política de patrimônio que dirigiu durante décadas. Foi, acima de tudo, um homem de letras, um espírito moderno que soube reverberar o humanismo mineiro no mundo.
Antes da política, veio a palavra. Em 1920, aos 23 anos, Rodrigo publicou seu livro de contos “Velórios”, pequeno tesouro da literatura mineira, em que o tempo suspenso do luto se torna metáfora do tempo cultural:
“O velório era, antes de tudo, um tempo suspenso. A casa enchia-se pouco a pouco, como se o luto se espraiasse nas paredes, no assoalho, no ar.” (“Velórios”, 1920)
Essa sensibilidade — o entendimento da memória como atmosfera — foi o que levaria Rodrigo, mais tarde, a conceber o patrimônio não como acervo morto, mas como palavra viva. Como seus contemporâneos Portinari, Niemeyer, Drummond — modernistas que jamais renegaram as raízes — Rodrigo foi um espírito de síntese: olhava o futuro, mas reverenciava o barroco. Sua atuação no SPHAN não foi nostálgica nem reacionária: foi criativa. Seu olhar sabia que o Brasil moderno, para ser autêntico, precisaria dialogar com o passado. Correspondendo-se com Mário de Andrade, expressava esse pensamento com clareza:
“O que mais temo não é o esquecimento das pedras, mas o apagamento do que nelas vive.”
Influenciado pelas escolas europeias da restauração — os conceitos de Wertbegriff de Riegl (valor de memória) e o restauro integrado de Giovannoni — Rodrigo foi além, ao aplicar esses princípios à realidade mestiça, barroca e popular do Brasil. Não reduziu o patrimônio a muros e fachadas: viu nele um processo contínuo de identidade. Em seu relatório inaugural do SPHAN, já afirmava:
“É necessário proteger não só as obras consagradas, mas as manifestações populares que traduzem o sentir nacional.”
Essa visão antecipava, em espírito, o conceito de patrimônio imaterial — que só décadas depois seria formalizado.
Mais que um burocrata da cultura, Rodrigo foi um homem de síntese: um republicano que admirava Aleijadinho; um modernista que compreendia as festas populares; um gestor que escrevia como poeta. Não por acaso, teve como chefe de gabinete Carlos Drummond de Andrade, cuja “Elegia 1938” ressoa o sentimento de tantos que, como Rodrigo, tentavam salvar um país em meio às perdas do tempo:
“Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.”
E, como seus amigos modernistas, Rodrigo sabia que o novo só é fecundo quando dialoga com o antigo. Sua geração, que projetava Brasília com Niemeyer e Portinari, fazia também de Ouro Preto um símbolo nacional — não de um passado congelado, mas de um Brasil profundo que precisava ser ouvido.
A tela “A má notícia", de Belmiro de Almeida, de 1897 — hoje no Museu Mineiro — parece condensar esse espírito: uma jovem mulher, sentada, recebe uma carta de perda. A pintura foi imediatamente lida como expressão do luto pela mudança da capital de Ouro Preto para Belo Horizonte — o ritual simbólico da travessia do antigo para o novo. No mesmo ano em que essa notícia se anunciava em cores e sentimentos, nascia em Belo Horizonte Rodrigo de Melo Franco de Andrade — um menino da nova capital, herdeiro do barroco e, ao mesmo tempo, agente de um olhar moderno. Filho dessa travessia, Rodrigo, modernista que soube reverenciar o barroco, legaria ao país um olhar de continuidade.
Hoje, seu legado permanece mais atual que nunca. Ainda é o Decreto-Lei 25, de 1937 — que Rodrigo ajudou a conceber — que regula o patrimônio cultural brasileiro. O Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, concedido anualmente pelo IPHAN, continua a reconhecer projetos e iniciativas em todo o país, como homenagem viva ao seu pensamento.
Por isso, sua escolha como tema do Festival Literário Internacional de Paracatu (Fliparacatu) é mais que oportuna: é necessária. Pois é na palavra — na escrita, nos pareceres, nos discursos — que reside a origem do olhar que ele nos legou.
Em um tempo que corre veloz e esquece com facilidade, Rodrigo continua a nos ensinar:
“Não se protege o que não se ama. E não se ama o que não se conhece.”
De Belo Horizonte para o Brasil e para o mundo, sua memória segue viva. A ele devemos o Brasil que aprendemos a ver.
LEÔNIDAS DE OLIVEIRA é secretário de estado de cultura e turismo de Minas Gerais