A morte como tema central dos contos do único livro: "Velórios"
Rodrigo Melo Franco de Andrade estreou em 1936 com "Velórios", único livro de contos sobre a morte e a sociedade do século 20. Leia um conto abaixo
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Siga noRodrigo Melo Franco de Andrade fez sua estreia na literatura, em 1936, com o livro de contos “Velórios”, o único que escreveu. O tema central da obra é a morte, trazendo personagens complexos e expondo cenários da sociedade brasileira no século 20. Leia, abaixo, um dos contos do livro.
“Príncipe dos prosadores”
– Este é que teria sido, se quisesse, o Príncipe dos Prosadores.
E apontava o amigo morto, entre os quatro círios tremeluzindo à brisa que soprava pela janela aberta. O dia tinha raiado sem que se desse por isso e, àquela hora, eram poucas as pessoas que restavam do velório. Eles sentiam o torpor agradável do sono próximo e só de esguelha, uma vez por outra, é que avistavam o cadáver, já integrado no mobiliário da sala. No jardim cantavam vagamente uns passarinhos e as árvores oscilavam devagar, ao vento fresco. A conversa sonolenta não tinha possibilidade de se animar. Mas uma empregada trouxe a bandeja de café e o líquido quente e forte estimulou-os levemente, atenuando a dormência que sentiam nos membros e no espírito.
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– Pois é o que eu lhe digo: ele, se quisesse, teria sido o príncipe dos prosadores.
Repetiu a frase com convicção e explicou que o amigo tivera realmente um talento literário excepcional. Escrevera na mocidade várias coisas positivamente admiráveis, numa prosa que ninguém tinha igualado. Entretanto, as exigências da atividade profissional o tinham desviado da literatura e, hoje em dia, já não havia quem se lembrasse do que ele escrevera alguns anos atrás.
O outro acendeu mais um cigarro e lançou um olhar distraído ao cadáver, querendo ponderar que no Brasil faltava a noção precisa do que fosse um prosador digno desse nome. Mas o amigo do defunto estava com a palavra e fazia com método o elogio do estilo daquele artista consumado a quem não se tinha prestado a homenagem que merecia. Recordava-lhe contos e fantasias brilhantes que jaziam esquecidos nas coleções de revistas literárias efémeras. Aludia ao vigor e à concisão de suas melhores páginas. Mencionava outras qualidades características do escritor malogrado.
Foi quando a moça loura, que tinha aparecido horas antes na sala e rezara algum tempo junto ao caixão, deu entrada novamente ali, emergindo por certo de algum quarto onde estivera a consolar a viúva. Espantou a mosca que pousava na testa do defunto, ajeitou algumas flores no caixão e ajoelhou-se para rezar outra vez.
– Quem é essa senhora?
O rapaz perguntou, muito interessado, enquanto a moça fazia as orações de cabeça baixa, movendo os lábios levemente.
– É concunhada dele. Casada com aquele médico magro que eu lhe apresentei esta noite aqui, quando nós estávamos na varanda.
Ela tinha uma cabeça adorável. Espáduas de uma pureza perturbadora. Um corpo cuja brancura se adivinhava pelos braços nus que escapavam do vestido preto.
– É muito boa, muito boa — confidenciou o rapaz ao outro, num tom persuasivo.
– É sim. É muito boa.
O homem concordou com ternura. Calaram-se longamente, olhando a moça que rezava. Estavam, lívidos, de barba crescida, imbecilizados pela noite passada sem dormir. Ela, no entanto, não dava a impressão de nenhum abatimento, apesar da palidez que a falta de pintura lhe produzia. Tinha uma frescura que resistia à insônia e aos reflexos trêmulos das velas. Os cabelos, perto da nuca, pareciam molhados. Talvez ela tivesse tomado um banho ao amanhecer.
– Mas é como eu lhe dizia: ele só não foi o príncipe dos nossos prosadores porque não quis — insistiu o homem, desta vez em voz mais alta.
E repetiu tudo quanto tinha asseverado, com ênfase nova, escolhendo os termos, acentuando as expressões mais elegantes. Ela estaria ouvindo? Conservava a cabeça baixa, as mãos unidas sobre o rosário e continuava a rezar interminavelmente.
Quando arrefeceu por um momento a apologia literária do defunto, o rapaz tornou:
– Mas como é boa essa mulher...
Outro aproximou-se dele e segredou ainda com hálito de café:
– Dizem que...
Precisamente naquele momento, a vítima, amparada por duas amigas, entrava na sala, para se atirar, aos gritos, sobre o cadáver. Houve um rebuliço pela casa inteira.
– Tem paciência, Isaura. Deus é muito grande.
Disseram-lhe outras palavras de conforto, mas a viúva não cessava de se lamentar, desesperada.
A moça enxugou umas lágrimas nos olhos verdes. Tinha-se levantado e acariciava docemente a cabeça da cunhada que soluçava debruçada sobre o marido morto.
Os homens se esgueiraram, constrangidos.
• Reprodução de conto publicado em “Velórios”, terceira edição, Cosac & Naify, 2004