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As mulheres e a fé na escrita de Dia Bárbara Nobre

Em entrevista ao Pensar, a escritora cearense conta como a religiosidade da cidade natal influenciou sua formação de historiadora e levou ao romance de estreia

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“Venho do Cariri, lugar de muitas histórias e de muita religiosidade. Quem vai para lá fica realmente impressionado com a capacidade que as pessoas têm de construir narrativas sobre o próprio lugar e de também, às vezes, transformar essas narrativas.” A afirmação é da cearense Dia Bárbara Nobre, em entrevista no podcast do Pensar. O romance de estreia da escritora, “Boca do mundo”, foi lançado recentemente pela Companhia das Letras, e é ambientado na cidade fictícia de Urânia. “É um lugar onde só nascem mulheres, onde o mundo começou e onde pode acabar também e é o lugar onde mora a serpente que é a narradora do livro”, conta.

Antes, ela lançou pela editora Penalux o livro de contos “No útero não existe gravidade” (dedicado “às mulheres que temiam olhar no espelho e agora fazem dele uma arma”) e participou da antologia “O dia escuro”, histórias inquietantes escritas por autoras brasileiras contemporâneas, com o conto “Paixão de santidade”, “sobre uma beata que vai chegar a conclusões muito loucas a partir da experiência religiosa dela”.

Doutora em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Dia Bárbara Nobre adaptou a tese para o livro “Incêndios da alma: Maria de Araújo e os milagres do Padre Cícero: a história que o Vaticano tentou esconder”, lançado pela Planeta no ano passado. “Eu pego a história da beata Maria de Araújo, que estudei por dez anos, e coloco em ‘Boca do mundo’, há uma conexão entre os dois livros”, conta a autora, que tem as histórias de mulheres e das religiões no topo dos estudos acadêmicos.

Depois de passar por Brasília, Rio e Petrolina (PE), a autora cearense mora desde 2024 em Minas Gerais; acaba de deixar Belo Horizonte e de se mudar para Aimorés, na divisa com o Espírito Santo. “BH é uma cidade muito propícia para gente caminhar, muito arborizada, e gostei demais de frequentar as livrarias da Savassi”, contou, antes da gravação da entrevista no estúdio do Estado de Minas. Em breve, Dia Nobre voltará a Belo Horizonte para um bate-papo sobre “Boca do Mundo” na Livraria do Belas. Leia, a seguir, trechos da participação da escritora cearense no podcast do Pensar.

Encruzilhada como inspiração

“Sou de Juazeiro do Norte, mas eu saí de lá aos 22 anos, fiz minha graduação lá e depois eu rodei bastante assim. Morei no Rio Grande do Norte, em Brasília, no Rio, em São Paulo... Morei fora do Brasil. Aí fui parar no sertão de Pernambuco. Em Petrolina, bem no sertão mesmo. Visitei vários povoados durante a minha estadia lá. No vale do São Francisco, viajava muito para pequenas cidades do interior. Uma impressionou muito, no meio de uma encruzilhada. Tem uma rua que corta e aí você tem casinhas de cada lado da cruz e acabou a cidade que, na verdade, é um distrito da cidade que se chama Santa Maria da Boa Vista. É um povoado com mística própria, várias histórias interessantes.

A ideia do livro nasce de uma encruzilhada. um símbolo fortíssimo dentro da mítica religiosa. É um lugar de encontros: no cristianismo, essa cruz representa o sofrimento de Cristo. Em algumas religiões pagãs, é um lugar de poder. Quando a gente pensa nas religiões de matriz afro, a encruzilhada é o lugar onde habita Exu. A primeira cena que surgiu na minha cabeça, e que está no livro, é a de uma mulher dirigindo em uma estrada na caatinga. Ela para no acostamento, enterra um negócio lá, sai, mas o carro quebra na encruzilhada e ela acaba ficando lá. É como se esse lugar a escolhesse, determinando que lá ela vai ficar. Por isso, o espaço, para mim, é muito importante: não penso como cenário. É um personagem também.”

Formação como leitora

“Durante muito tempo, as mulheres foram escritas pelos homens. Personagens femininas só falavam o que os homens queriam que elas dissessem, para bem e para o mal. Isso me incomodava como leitora. Aprendi a ler com quatro, cinco anos de idade. Aos sete, comecei a frequentar a biblioteca do Sesc, em Juazeiro do Norte. Lia de tudo: quadrinhos, historinha para criança... Aí comecei a ler clássicos como José de Alencar, que a gente tem muito contato, Rachel de Queiroz, o próprio Machado, que eu não gostava muito porque não entendia nada... Tinha uma bibliotecária que me estimulou muito a ler e montou um clube de escrita para crianças e de adolescentes.

E foi aí que eu comecei a escrever. Mas uma coisa me incomodava. Quando havia pequenos concursos entre a gente, sempre ganhava um menino. Era muito difícil para uma menina ganhar. Até que um dia eu ganhei e pensei assim: ‘Se ganhei é porque eu escrevo como um menino, então eu devo ser boa’. Olha como isso é louco. Na cabeça de uma criança, pensar que, por falta de referências, a ideia de que os homens são bons em tudo que fazem e a gente tem de se esforçar muito para chegar nos lugares é introjetado na gente desde criança. Pelo menos no lugar de onde eu venho e da geração que eu sou. De uns 15, 20 anos para cá, isso mudou. A gente já tem mulheres muito cientes do potencial delas, os espaços se abriram. Mulheres sempre escreveram, mas hoje a gente tem mais espaços.”

Homens escrevem sobre mulheres

“Acho que a experiência de escrita de um homem sobre a vivência de uma mulher, é sempre uma escrita verticalizada porque a gente está numa sociedade em que os homens sempre foram considerados superiores às mulheres. Não só no Brasil. A gente pega o livro do Harold Bloom com os cânones da literatura ocidental e há pouquíssimas mulheres, a maioria são homens. Fica uma falta de referência. Quando mulheres escrevem sobre mulheres acho que traz um pouco mais de força porque traz a coisa vivida mesmo. Mesmo que eu esteja falando, por exemplo, de uma mulher que é lavadeira, e nunca fui lavadeira, mas consigo, talvez, entrar muito mais no lugar dessa mulher.”

Identificação

“A literatura escrita por homem sempre foi considerada universal, que retrata problemas universais. E a escrita por mulheres foi considerada do universo do particular. Eu me identifico muito mais quando leio livros escritos por mulheres do que com a experiência, por exemplo, de um homem de meia-idade que se divorciou e quer se encontrar nos braços de uma garota de 20 anos. Entendo muito mais a garota de 20 do que o cara.”

Coletânea “O dia escuro”

“A gente quis fazer algo ali próximo do que a Mariana Enriquez (escritora argentina) fez em livros como “Coisas que perdemos no fogo” e “Nossa parte de noite”: escrever contos de terror, mas que não sejam só o terror que a gente conhece da tevê, que causa o jump scare. O susto vai vindo da incredulidade, de pensar ‘eu não acredito que essa personagem tá fazendo isso’, algo que autoras como Samanta Schweblin (argentina, autora de “Pássaros na boca”) e Mónica Ojeda (equatoriana, de “Mandíbula”) fazem. Maria Fernanda Ampuero (venezuelana) faz isso de uma forma um pouco mais explícita em “Rinha de galos”. Em “O dia escuro” tem um conto muito legal da Amara Moira que traz também uma coisa do body horror.”

Religiosidade

“Todo mundo que nasce em Juazeiro do Norte é muito envolto com religião desde pequena, queira ou não. Mas a espiritualidade que está em “Boca do mundo” é diferente da religiosidade da fé. Queria transformar essa religiosidade em algo que fosse mais orgânico, e não imposto, como ocorre com a fé da igreja católica no mundo. A história que mais me inspiro para criar o cenário de “Boca do mundo” é a da Pedra da Batateira. Quando os indígenas cariris são expulsos da região, eles deixam algumas maldições.

Uma delas é dessa pedra, que guarda uma fonte de água inesgotável. Se retirada a água, o vale vai voltar a ser mar. A gente tem evidências paleontológicas que essa região, durante muito tempo, foi mar. A pedra está lá até hoje, acorrentada ao chão no leito de um rio e as pessoas têm muito medo de tirá-la.

Os indígenas que estão na história, quando são expulsos, deixam lá sangrando essa boca do mundo, essa água que está jorrando. Quando a protagonista chega, ela cria Urânia a partir desse lugar que é essa boca do mundo. Ela crava uma praça no meio e bota uma fonte para esconder a pedra, para ninguém saber onde é que o mundo começa nem onde o mundo vai terminar. Ela se apodera desse território.”

Lúcio Cardoso

“Li ‘Crônica da casa assassinada’ três vezes consecutivas. Terminava, recomeçava o livro, lia, terminava. E tive vários sentimentos: adorei, odiei, senti raiva, senti muita vontade de escrever como ele escrevia. Foi uma reação muito intensa: um trecho me deixou com tanta raiva que rasguei a página. Pensava assim: ‘Isso é muito eu, parece muito comigo’. Lúcio Cardoso é um autor que eu queria ter conhecido pessoalmente. Acho que, injustamente, ele ainda é pouco conhecido. Eu o acho muito subversivo e foi isso o que me incomodou tanto na leitura.”

Sonhos

“Desde pequena, eu sonho muito. Sonhos loucos, sonhos recorrentes. Sonho com cidades que eu nunca vi na vida acordada, mas que conheço assim mesmo. Tenho cadernos onde anoto sonhos, inclusive em “Boca do mundo” tem coisas que estão nos meus cadernos. Muitos dos sonhos de Teresa (personagem) são os que tive e emprestei para ela. No livro, há personagens que só conversam nos sonhos. Lá elas conseguem se entender.”

Memória

“Muitas pessoas tendem a achar que a memória se refere aquilo que a gente lembra, mas não é bem assim. A memória, na realidade, está entre o que lembramos e o que esquecemos: é um recorte que aponta não somente para a lembrança, mas também para o esquecimento.”

“Boca do mundo”

  • De Dia Bárbara Nobre
  • Companhia das Letras
  • 200 páginas
  • R$ 79,90

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