A infância sem pátria de crianças durante a ditadura militar
Livro "Crianças e exílio" traz 46 relatos memorialísticos sobre as experiências e traumas causados pela vida de banimento de perseguidos pelo regime de 1964
compartilhe
Siga no“Para mal e bem, o exílio excede a condenação de um único destinatário, estende-se, até hoje, em todos nós, do qual é prova esse relato. O exílio, como pena, não se extingue, somente se abranda. De nossa parte, não voltamos jamais para o lugar que deixamos, às paisagens de nossa infância (...). O que o exílio nos tirou, sobrevive, hoje, entre as convicções e as lembranças.”
Anacleto Julião
Pablo Pires Fernandes
Especial para o EM
Eram apenas crianças. Aprendiam a entender o mundo como qualquer uma. No entanto, algumas tiveram que encarar a vida sob um prisma bem diferente. E não foram elas, nem seus pais, que escolheram uma infância de rupturas, de traumas, violência e de ter, para sempre, uma identidade fragmentada e de não pertencimento. Ser de lugar nenhum.
É sobre isso – e muito mais – que se trata o livro “Crianças e exílio – Memórias de infâncias marcadas pela ditadura militar” (Carta Editora), organizado pelas professoras universitárias Helena Dória Lucas de Oliveira e Nadejda Marques. São 46 relatos de pessoas que tiveram suas vidas cingidas pela política ditatorial do Estado brasileiro. O único motivo era serem filhos ou ter outro parentesco com opositores ao regime instalado com o golpe de 1964.
Leia Mais
O livro é contundente. Expõe a política deliberada de perseguição e violação aos direitos humanos praticada pelos militares que assaltaram o poder no Brasil em 1964, agravado pelo Ato Institucional nº 5, de 1968. Isso já foi denunciado e relatado em vários filmes e livros. Pouco se falou, no entanto, a respeito do impacto da cruel repressão sobre as crianças. Todas elas, desde então, carregam consigo algo em comum: o exílio.
Clandestinidade, distância dos pais, ausência de convívio com a família, experiências traumáticas em instituições para menores, constantes mudanças de países – e, com isso, rupturas, adaptação a novas línguas e culturas. Houve também acolhimento e solidariedade entre pessoas iguais e muito diferentes.
São muitos os caminhos do exílio. E a riqueza desses relatos é exatamente sua pluralidade. Como testemunhos em primeira pessoa, constituem precioso documento para a historiografia a respeito do período trágico da ditadura militar, que durou 21 anos e fez mais de 400 vítimas entre mortos e desaparecidos. Estes 46 relatos são de sobreviventes, também vítimas da política que eliminava qualquer dissidência ideológica, independentemente da idade.
“A insegurança ainda permanece em mim. Como também permanece a minha busca por pertencimento a algum lugar. Ou seja, minha identidade”
Zuleide Aparecida do Nascimento
“INIMIGO INTERNO”
A prática deliberada de extirpar o “inimigo interno” e a institucionalização da tortura, após o AI-5, criaram um terreno em que as violações de direitos humanos eram frequentes. E isso fez com que o aparato repressor atingisse até as crianças. Mulheres grávidas foram torturadas na prisão, outras ameaçadas diante de seus filhos, muitas vezes usados como arma psicológica.
Os militares, com suas prisões ilegais ou o desaparecimento de dissidentes, não ignoravam o fato de que suas vítimas poderiam ser pais e mães. Isso, aliás, era frequentemente utilizado para chantagens e tortura nos porões prisionais. Antes mesmo do exílio, os traumas da violência do regime deixaram cicatrizes em muitas dessas crianças. Várias delas se depararam com militares armados e ameaçadores em algum momento da infância. Outras viveram apartadas de seus pais por eles serem clandestinos. A ditadura também não reconhecia filhos de dissidentes nascidos no exterior. Há inúmeros casos em que embaixadas brasileiras simplesmente não emitiam certidões ou passaportes aos considerados “elementos perigosos” pelo regime.
EXÍLIO PRECOCE
Os relatos de “Crianças e exílio” trazem uma dimensão bastante humana desses traumas, expressos em narrativas de estilos distintos, mas que se complementam formando um mosaico de impressões sobre o período. Como se constata nos 46 relatos do livro, muitos autores partiram para o exílio bem jovens ou bebês de colo, outros nasceram fora do país. A distância da pátria, da origem e do afeto familiar, constituiu vidas bastante singulares a essas crianças brasileiras.
Várias crianças foram obrigadas a se mudar de país diversas vezes e, a cada novo endereço, adaptar-se a outras realidades – língua, colegas de escola, vizinhos, comidas, hábitos culturais – e, sobretudo recriar uma rede de sociabilidade inédita. Afetos são essenciais para qualquer criança, de qualquer idade. Nem sempre isso foi possível na vida no exílio.
Com a vida dividida entre lembranças ou projeções de uma pátria, em vários casos desconhecida, emergem pequenos fatos que compõem os afetos possíveis. É surpreendente o valor afetivo das comidas: o gosto de um sorvete, de um prato típico cubano, das frutas chilenas. E também emergem memórias das reuniões entre brasileiros no exterior, elemento que mantinha viva, para os pais certamente, a imagem do Brasil distante e do regresso, então impossível.
A música brasileira é um elemento recorrente nos textos, várias vezes servindo de elo com um Brasil imaginário. Canções da MPB foram determinantes para o exercício do português no exterior, além de criar imagens, para as crianças, de um país desconhecido. O regresso ao Brasil, obviamente, representou uma ruptura imensa na vida dessas crianças e adolescentes. Como é “voltar” a um lugar que nunca estiveram? Como deixar para trás o que os tinha constituído? O retorno expõe, então, com toda violência, suas identidades fragmentadas, divididas e desterradas.
“VIVA CHILE”
Diante de rupturas radicais, crises de identidade e árduas adaptações, essas crianças, frutos do exílio, foram à luta, recolhendo cacos de sua formação, de seus afetos e restabelecendo um “ser brasileiro”.
As trajetórias desde então, obviamente, são completamente distintas. Cada qual buscando se integrar ao “novo mundo” com as armas que adquiriram na singular jornada.
Para alguns, a infância segue traumática e guardada em um canto de memória. Poeira ainda não assentada, difícil de encarar. A proposta do livro sacudiu essa poeira e criou um desafio: é preciso registrar essas memórias. A necessidade de desvelar essa parte praticamente oculta da história e de expor os efeitos da ditadura sobre essas infâncias rompeu o silêncio.
E como tudo começou? Em 2023, foi criado um grupo de WhatsApp chamado “Viva Chile”. A proposta era reunir ex-exilados brasileiros que viveram no Chile e organizar uma caravana para comparecer às rememorações dos 50 anos do golpe de Estado de 1973. Nos anos anteriores ao bombardeio do palácio presidencial La Moneda, milhares de brasileiros foram acolhidos no país pelo governo eleito do presidente socialista Salvador Allende. Estudantes, intelectuais, políticos e militantes se refugiaram no país que prometia a via democrática ao socialismo. Mas o Chile teve seu 11 de setembro, quando foi submetido à sangrenta ditadura do general Augusto Pinochet, que durou até 1990.
A caravana tupiniquim se realizou e mais de 100 brasileiros estiveram em Santiago em setembro de 2023. Houve reencontros históricos, novos laços se formaram. Ao lidar com as memórias de então, outro grupo de WhatsApp foi criado.
Em 23 de setembro surgiu o “Crianças e exílio”, reunindo dezenas de filhos nascidos sob a ditadura e sob o exílio. O livro é fruto deste encontro de pessoas, hoje já distantes da infância, mas que têm a marca do exílio em sua vida de criança.
No grupo de WhatsApp, houve um compartilhar de fotografias, de lembranças de cheiros e comidas, de momentos afetivos de acolhida no exterior. Mas a proposta dada era que seus integrantes escrevessem um livro relatando a vida no exílio, suas experiências e traumas, enfim, registrassem esse passado turbulento. O livro foi concretizado e publicado.
Nos relatos, fica evidente a dificuldade de lidar com o passado, a dor que causa revirar sentimentos mantidos abafados no inconsciente. Disso ainda se fala no grupo. Há quem não conseguiu ler o livro.
A escrita foi um esforço para boa parte do grupo de autores. No entanto, a publicação representou uma certa libertação e o compartilhar histórias análogas criou o sentimento de pertencimento. Após anos guardando cacos de memórias e identidades, este livro é uma redenção.
Pablo Pires Fernandes é jornalista
“O ser estrangeira, o estar de passagem entranhou-se em mim. O sentir-se diferente é permanente. O não criar raízes nos lugares me caracteriza. O exílio me constitui. É um modo de viver difícil. Eu me exilo em meu próprio país, na minha pátria”
Helena Dória Lucas de Oliveira
ENTREVISTA / HELENA DÓRIA LUCAS DE OLIVEIRA
(organizadora da coletânea)
“A história de minha família ainda está envolta em silêncio”
Como se deu a elaboração do livro e quais as motivações para reunir estes relatos?
Participei como beneficiária do projeto do Ministério da Justiça do governo Dilma de reparação às pessoas afetadas pela ditadura militar e seus descendentes, chamado Clínicas do Testemunho. O Estado brasileiro teve que desenvolver esse projeto como uma punição da Corte Interamericana dos Direitos Humanos. Essa participação gerou em mim uma vontade de encontrar quem tinha brincado comigo enquanto vivíamos no exílio. Esse desejo individual tornou-se coletivo durante a viagem ao Chile, em 2023, por conta dos 50 anos do golpe militar ao presidente Salvador Allende, quando em contato com pessoas de minha geração fui falando desse desejo e recebendo respostas positivas. A motivação é conhecer histórias de outras famílias exiladas e ir preenchendo lacunas da história de minha família, que ainda está envolta em silêncio, em “não lembros”.
Como foi, para você, resgatar essas memórias, muitas vezes difíceis e traumáticas em vários casos e relatos?
As memórias do Chile, pelo motivo da perda de meu irmãozinho Eduardo, eu já tinha trabalhado mais na terapia [o irmão de Helena morreu afogado numa piscina, no abrigo de refugiados da ONU Padre Hurtado, em Santiago – N. Ed]. O difícil para mim foi escrever, relembrar sobre o período que vivemos em Guiné-Bissau. Percebi que foram os anos mais difíceis do exilio: um país de população negra e eu branca, sem poder passar despercebida, o estrangeiro em mim estava na pele; um país em que vivi já maior com 15, 16, 17 anos, já entendendo mais as relações econômicas entre as nações do mundo, as consequências do colonialismo europeu no continente africano e, especificamente, o português na Guiné-Bissau; um país em o bulling que eu sofria na escola era dos professores portugueses em relação, exatamente à minha marca como brasileira: meu jeito de falar.
Um dos aspectos mais fortes do livro é o sentimento de não pertencimento e desterritorialização. Como foi isso para você, já que foi obrigada, pelas circunstâncias, a viver em vários países?
O viver em vários países marcou-me pelo ‘deixa tudo para trás’ e ‘começa de novo’. Deixa amizades, escola, casa, bairro, conhecimento que já tinha adquirido daquele país e ‘começa de novo’: conquistar amizades, integrar-se na escola, acostumar-se a outra casa e outro bairro, aprender a cultura do país, idioma, gírias, o que pode, o que não pode fazer. Isso para uma criança e uma adolescente é doloroso. Mas quando criança e quando adolescente a gente vai enfrentando, com dor, mas temos que enfrentar e pronto. Não tínhamos poder de decidir. Agora, enquanto pessoas adultas, analisando nossas limitações e dificuldades é que eu percebo o quanto essas viagens impactaram minha personalidade.
Como foi seu retorno ao Brasil?
Era um novo país, mesmo sendo a minha pátria. O melhor foi encontrar a família estendida, tias e primas, avó e avô. Algo, talvez diferente do grupo que escreveu o livro, foi que voltamos a morar na casa que era a nossa antes de sair do Brasil. A mãe e o pai deixaram nossa casa alugada, aos cuidados de um amigo. Então, o bairro, a casa, eram os mesmos, embora o país fosse como se continuássemos estrangeiros. Voltei para fazer vestibular e entrar na universidade. Precisei descobrir a literatura, a geografia, o idioma, a história do meu país.
A criação do grupo no WhatsApp e o próprio ato da rememorar e tornar esta memória escrita foi uma ação que criou laços e restabeleceu afetos. Como foi este processo?
Esse processo de encontrar com pessoas que viveram trajetórias muito parecidas às tuas e até reencontrar com quem não se lembra de ti, para mim é a parte mais linda da produção do livro. Para mim não se trata tanto de uma cura, mas de um estar junto, de chegar a um lugar “abstrato” em que já tens amizades, já conheces os códigos, não precisas esconder, abafar teu passado. Ao contrário, o bom é contar essas histórias passadas, porque vai ter alguém de vai lembrar e vai “aumentar um ponto”.
“CRIANÇAS E EXÍLIO - MEMÓRIAS DE INFÂNCIAS MARCADAS PELA DITADURA MILITAR”
• Organização: Nadejda Marques e Helena Dória Lucas de Oliveira
• Carta Editora
• 344 páginas
• R$ 85
• LANÇAMENTO: Segunda-feira (2/6), às 17h, no Auditório Bicalho da Fafich, no câmpus UFMG (Avenida Antônio Carlos, 6.627, Pampulha, BH)