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Cartas ajudam a iluminar ações de André Rebouças

Correspondência com Joaquim Nabuco contribui para desmontar imagem simplista do intelectual negro que se tornou um dos articuladores do movimento abolicionista

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Faustino Rodrigues
Especial para o EM

Em meio às celebrações e disputas de memória sobre o fim da escravização no Brasil, é comum leituras apressadas e distorcidas sobre André Rebouças. Embora lembrado como engenheiro e por sua amizade com Dom Pedro II, Rebouças foi um pensador liberal comprometido com a construção de um projeto modernizante e democrático para o país. A sua defesa da abolição não era apenas um gesto humanitário ou moral; era parte de uma visão mais ampla de mudança social e econômica. No horizonte, a pequena propriedade, a reforma agrária e a imigração legalmente regulada: os pilares para um Brasil mais justo, moderno e produtivo. O conservadorismo amiúde associado a ele esconde a faceta mais ousada e radical – agora possível de ser conhecida. É uma faceta a colocá-lo em confronto direto com os interesses da poderosa aristocracia escravista.


A historiadora Hebe Mattos é organizadora de “Cartas da África” e dos dois volumes de “O engenheiro abolicionista”, publicados pela Chão Editora – o segundo deles chegou às livrarias nas últimas semanas. Na primeira dessas obras, lançada em 2023, temos a correspondência epistolar de André Rebouças durante o seu período no continente africano. Já nas mais recentes, além de cartas, também foram incluídos diários e alguns de seus artigos. Mattos, professora de história na UFJF e UFF, é uma das maiores especialistas em abolição e pesquisadora da vida de Rebouças. Ela traz à tona os múltiplos aspectos do pensamento e atuação de Rebouças, desmontando a imagem do “negro conservador amigo do imperador”.


Em pesquisas recentes, Mattos mostra como “Negro André” construiu um consciente registro de si mesmo, revelando um pensamento racial sofisticado, atento às contradições do liberalismo global e às armadilhas de um capitalismo excludente. Ao recuperar a relevância política e intelectual de Rebouças, a historiadora também propõe uma releitura do próprio movimento abolicionista, destacando sua dimensão popular e radical – bastante negligenciada pela narrativa oficial que consagrou a princesa Isabel como protagonista solitária da libertação dos escravizados.

O que motiva a publicação deste novo trabalho sobre a abolição? Qual a sua importância?

Esse segundo volume de “O engenheiro abolicionista” resgata o lado mais radical do movimento abolicionista. A abolição, embora uma enorme conquista, foi desde o início percebida como incompleta. Essa é uma ideia que já circulava à época. Revisitar esse processo de conquista da abolição legal da escravidão, o esforço para arrancar essa transformação da lei, é fundamental. Embora houvesse setores conservadores, o movimento abolicionista tinha um lado radical — principalmente quando consideramos sua aliança com os libertos. É essencial recuperar a força do movimento social e sua conexão com os grupos populares das cidades.

E qual o papel de André Rebouças nesse processo?

Rebouças é um personagem incontornável pela sua importância em pensar a abolição. Os últimos cinco anos de sua vida foram dedicados a organizar seus escritos, como os diários. Parte desse material foi doada ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB); o restante permaneceu com a família. Esse acervo tem sido constantemente revisitado, pois revela camadas importantes de seu pensamento. Curiosamente, a parte abolicionista ficou subrepresentada na publicação dos diários feita em 1938. E temos podido resgatá-la agora.

E as cartas de Rebouças na África? Como foi o seu interesse por elas e qual a sua importância?

Eu notei que por meio das cartas na África podia revisitar o pensamento racial de Rebouças, que por muito tempo foi visto como um liberal “colour blind”, alguém que evitava o tema racial. Mas, nas cartas, aparece um pensamento muito mais elaborado sobre raça. Ele se esforça para construir um registro de si mesmo, o que torna o trabalho biográfico muito desafiador e, ao mesmo tempo, fascinante. A biografia é uma ilusão, porque todos nós somos fluxos, e Rebouças é um personagem que em muitos momentos abre um leque de possibilidades. Ele é apaixonante.

Rebouças era um liberal próximo à monarquia, algo que supostamente não condiz com uma atuação radical no abolicionismo. Fale mais sobre isso.

Ele era um liberal monarquista, sim, mas sobretudo um liberal muito próximo de um liberalismo mais radical, defensor da pequena propriedade. Tinha grande proximidade com capitalistas ingleses e, na África, fica um tanto decepcionado com os limites desse liberalismo. Ao mesmo tempo, mantinha uma visão positiva da abolição nos EUA, mesmo observando o início do Jim Crow [conjunto de leis segregacionistas que institucionalizou a discriminação racial contra os negros nos EUA]. Ele não acreditava que o conservadorismo poderia modernizar o país. E, nesse ponto, estava errado – o conservadorismo conseguiu produzir desenvolvimento capitalista no Brasil. Ele acreditava que a modernização só seria possível por meio de reformas sociais mais profundas.

E qual era a proposta dele de modernização para o Brasil?

Ele defendia um projeto democrático de modernização, com reforma agrária e imigração legalista. Rebouças acreditava que os imigrantes deveriam vir para se estabelecer em pequenas propriedades e não para substituir os trabalhadores escravizados nas grandes lavouras de café, como acabou ocorrendo. Tentou convencer os fazendeiros de que isso seria benéfico para todos, não somente para os trabalhadores. Seu conservadorismo estava associado ao constitucionalismo, muito influenciado por seu pai [Antônio Rebouças, deputado e conselheiro de Dom Pedro I], e à defesa da monarquia como uma estrutura institucional. Mas a relação pessoal com o imperador se intensifica apenas depois da Lei Áurea. Na prática, ele não era um monarquista tradicional.

Diante disso, como foi a sua interpretação sobre a transição para a República?

Rebouças via a República como uma revanche da aristocracia contra a abolição. É importante lembrar que a princesa Isabel seguiu as sugestões dele ao retirar o gabinete Cotegipe [um dos últimos ministérios conservadores do Império, marcado pela resistência à abolição em sua defesa da aristocracia rural], o que foi crucial para a aprovação da Lei Áurea. Mesmo após a Proclamação da República, ele ainda tentou influenciar o novo regime em favor de seu projeto modernizante. Mas foi derrotado: não acreditava que o conservadorismo pudesse levar à modernização, e a história mostrou que isso foi possível, ainda que em termos muito próprios.

E por que a figura de André Rebouças foi apagada da memória coletiva?

A memória dele ficou marcada por uma leitura simplificadora: a de um “negro conservador, amigo do imperador”. É verdade que sua atuação como engenheiro sempre foi lembrada entre seus pares, mas sua participação no abolicionismo foi obscurecida no século 20, quando se construiu a narrativa da princesa Isabel como a grande responsável pela abolição. Getúlio Vargas, por exemplo, foi fundamental para consolidar essa imagem da princesa como símbolo da “dádiva” da liberdade. Ao mesmo tempo, os abolicionistas acabaram colados à imagem dos republicanos. Rebouças, que foi para o exílio e não se adaptou à República, virou uma sombra na história.

Existe um aspecto de Rebouças que você ache particularmente esquecido?

Sim, gosto muito de destacar algo pouco lembrado: sua relação com capitalistas internacionais. O capitalismo não se dissemina apenas por ideias – ele depende de pessoas, de agentes. Rebouças foi um desses agentes. Ele esteve nos EUA, foi amigo de empresários ingleses e pioneiro na circulação de capital pelo mundo. Essa dimensão global do seu pensamento modernizador precisa ser resgatada com urgência.

FAUSTINO RODRIGUES é psicanalista e professor de sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg)

Reprodução

“O engenheiro abolicionista: 2. No Hotel dos Estrangeiros — Diários, artigos e cartas, 1883-1885”
• De André Rebouças
• Organização e posfácio de Hebe Mattos
• Chão Editora
• 624 páginas
• R$ 123

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