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A Guerra do Paraguai como você nunca leu

Como a escritora paulistana Beatriz Bracher fez um livro original sobre o conflito a partir da seleção e edição de trechos de depoimentos de combatentes

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Como um elogio ao arquivo e à memória documentada é uma das maneiras de se ler o primeiro volume de “Guerra — I - Ofensiva paraguaia e reação aliada novembro de 1864 a março de 1866”, lançado pela Editora 34. Na obra, que será continuada com mais dois volumes, a escritora paulistana Beatriz Bracher reúne milhares de recortes com relatos, cartas, jornais, documentos oficiais e diários que narram a Guerra do Paraguai a partir da perspectiva de quem esteve no conflito que mudou a história sul-americana a partir da segunda metade do século 19.

Em seu mais recente trabalho, a ficcionista reconhecida por títulos como “Garimpo” e “Anatomia do paraíso” se afasta da prerrogativa de comandar a narrativa, mas mantém sua veia de romancista. A empreitada da escritora em “Guerra” se destaca, logo à primeira leitura, por ser integralmente composta por trechos que revelam, simultaneamente, a crueza do combate com a perplexidade dos combatentes. Não se trata de um livro dedicado a explicar ao leitor as razões geopolíticas que culminaram no embate internacional, como ele se desdobrou e seus impactos futuros, especialmente para Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai.

Em entrevista ao Pensar do Estado de Minas, a autora conta sobre seu processo de pesquisa e como concluiu que deveria escrever um livro em que sua contribuição criativa se encontra em uma minuciosa organização de relatos de dezenas de personagens (os combatentes) com êxito em criar um ritmo surpreendente para um livro de 500 páginas composto integralmente por recortes de textos escritos há mais de 150 anos. Com absoluta justiça, Bracher defende que a obra seja tratada como um romance.

Em um mesmo trecho separado por Bracher, Albuquerque Bello narra as desventuras no front de combate com uma miscelânea de situações que revelam o absurdo de uma guerra. Nas recordações, o tenente-coronel passeia, saudoso, pelo aniversário do filho Joaquim; depois narra uma briga no acampamento após um soldado ter castigado e marcado seu colega sem a aprovação do conselho; e termina com a macabra contatação que aquela semana era particularmente triste para as concubinas dos combatentes após o terceiro assassinato de uma mulher em poucos dias.

Bello também é bom exemplo de como os relatos permitem ao leitor conhecer o lado pessoal dos combatentes e os ferimentos emocionais e psicológicos do tempo longe de casa e próximo da morte. Em um dos vários trechos do tenente-coronel separados pela autora, ele escreve “essa noite sonhei muito com minha mulher, talvez por estar muito no pensamento a carta que ontem lhe dirigi. Sonhei também que o Lopes tinha proposto paz”, delirando com o fim do conflito que só viria anos depois e não com uma proposta de cessar-fogo do líder paraguaio, mas com sua morte em combate.

A sequência de trechos recortados e organizados por Bracher dá uma dimensão especial para o início da batalha, já que este primeiro volume compreende o intervalo entre 1864 e 1866. As próximas edições estão no forno e a autora espera publicar o segundo tomo ainda este ano. Na entrevista, ela também fala sobre a expectativa para os lançamentos futuros e como seu trabalho foi recebido pelos leitores e crítica.

Acervo pessoal


Entrevista/ Beatriz Bracher


“Tentei criar personagens e não consegui”

A estrutura narrativa do livro chama a atenção pela originalidade. O plano era escrevê-lo desta maneira desde o início ou a ideia surgiu ao longo das pesquisas?

Na verdade, esse livro não existiria sem essa forma. Porque eu comecei por acaso, eu não tinha nem interesse na Guerra do Paraguai, tinha tanto quanto qualquer brasileiro. Mas eu li um livro de memórias do Visconde de Taunay. Ele foi para a guerra muito jovenzinho e lá ele descreve umas cenas que me impressionaram muito. Primeiro, ele escreve muito, muito bem. Tem uma cena — que já é no final da guerra, que não está no meu livro ainda, porque vai ser no terceiro volume — em que tem o acampamento brasileiro ao lado do argentino. Todo mundo está sem comida, mas os argentinos tão com menos comida que os brasileiros. E eles às vezes invadem o acampamento brasileiro e matam cavalos para comer. E tem um rapaz, um jovem tenente, que é muito ligado ao cavalo dele. Ele fica muito temeroso de que aconteça alguma coisa e fica acordado a noite toda. Quando ele finalmente vai dormir, ouve um barulho, vai conferir e mataram o cavalo dele. E ele fica muito agoniado — e as outras pessoas também — porque sabem da história dele com o cavalo. Então, o comandante desse acampamento brasileiro vai falar com o comandante argentino, que precisa fazer alguma coisa diante da comoção. O comandante argentino sumariamente escolhe quem é que foi o culpado e chama os brasileiros para assistirem a seu fuzilamento. O tenente brasileiro dono do cavalo assiste ao fuzilamento, volta para a barraca e se mata.

O sentimento que me veio foi de que muitos e muitos brasileiros lutaram nessa guerra e eles têm muitas histórias. Essa não é uma guerra que aconteceu de tal a tal data, que teve tal e tal batalha. É uma guerra que muitos brasileiros foram lutar — como toda guerra, claro — mas a gente não tem isso dentro de nós. A gente não tem isso acompanhando o nosso presente como os americanos têm a Guerra Civil, como os franceses e os alemães têm a Segunda Guerra, uma coisa muito próxima. A gente não tem isso com a Guerra do Paraguai.

A minha questão não era tanto a importância da guerra, porque ela definiu a relação entre os países do Cone Sul, a questão da navegabilidade do Prata, ou porque depois ela vai apressar a abolição dos escravos e o final da monarquia.

A minha questão é saber que houve uma guerra em que muita gente brasileira morreu e muita gente matou. E aí comecei a ler outros livros de combatentes, do Visconde de Taunay, do Dionísio Cerqueira, os diários do André Rebouças e cada vez ia me interessando mais. Essa personalidade que eu queria, essa originalidade como eles contam. São essas palavras que me trazem a inteireza daqueles homens. Eu tentei criar personagens e não consegui, e percebi que eu os queria — eles através das suas palavras.


Como foi a escolha da ordem? Você pegou trechos muito longos e foi recortando para incluir na sequência dos capítulos?

Na verdade, a maior parte dos trechos eu já escolhi no tamanho que aparece no livro. Às vezes eu separava um maior e editava depois. Mas eu separei pelo menos cinco vezes mais do que tem no livro. Na hora de fazer o capítulo, eu reli tudo que tinha e tirava várias partes. Era esse processo de selecionar, colar e apagar e então colar de novo. Porque tem a questão do assunto, mas tem a questão do ritmo. Foi uma colagem feita com a cabeça de ficcionista, por isso eu insisto tanto que se trata de um romance. Essa questão foi o que me guiou.


Em algum momento você pensou em contextualizar os momentos, ou escrever textos seus entre os recortes ou já percebeu desde o início que o livro funcionava bem com os recortes de forma exclusiva?

No começo de cada capítulo e às vezes subcapítulo, quando eu acho que é necessário, eu dou um resumo, porque eu queria que a pessoa soubesse o que ia acontecer ali e não se preocupasse muito em entender o que que está acontecendo no sentido de ir pesquisar para saber quem ganhou a batalha, onde o confronto aconteceu, coisas assim.

Eu também pensei, de certa maneira, não em explicar, mas em criar um personagem meu falso e, vez ou outra, colocar uma descrição de paisagem ou ainda repetir alguns fragmentos para enfatizá-los. O que eu entendi é que era importante as pessoas não se preocuparem muito em ficar entendendo em que lugar o soldado está. Mas fora isso, eu acho que o livro absorve as pessoas porque só tem quem lutou na guerra. Qualquer entrada minha para explicar, para contextualizar, iria me fazer ficar dona dessas pessoas. Do jeito que está, passa uma impressão de autonomia maior. Ou seja, esses textos não são ilustrativos da Guerra do Paraguai. E esses textos são a Guerra do Paraguai.


Como tem sido a resposta dos leitores sobre o livro e sobre como ele foi montado?

Tem mais gente vindo falar que gostou do que nos outros livros que eu escrevi. E sempre com essa pegada de dizer que leu como um livro de aventura. E eu achei muito curioso isso. Fico muito feliz. Isso me dá uma alegria imensa, porque tudo que eu não queria que fosse um livro cabeça, um livro de escritor para escritores ou uma coisa experimental. Apesar dele ser experimental, no sentido que não tem muitos assim.

É muito curioso, porque as pessoas falam assim: "Quando vai ser o segundo volume? Quero saber como acaba". E eu penso: ‘como assim como acaba? É a Guerra do Paraguai, todo mundo sabe’. Mas é como se essa fosse uma guerra nova que a gente está descobrindo. Então essa tem sido a reação e fico muito feliz.


Meus outros livros ganharam prêmios, têm boas críticas, mas muito poucos leitores. E esse livro (“Guerra”), que é o mais metodologicamente complicado, já está esgotando a primeira edição. Estou muito contente.

O livro reúne relatos de formatos muito diferentes, cartas formais entre autoridades, diários e relatos absolutamente pessoais. Como foi juntar trechos de gêneros tão diferentes?

O que mais faz a diferença se é mais próximo, se é mais formal, se é mais pessoal, é o gênero do texto mais do que a pessoa que escreve. Então os relatos do Jorge Maia são de um livro de história da Guerra do Paraguai, mas é muito a visão dele, dessa memória. O Dionísio Cerqueira, que é outro também muito próximo, é um livro de memórias. Tem uns que são diários, como o (André) Rebouças e o Albuquerque Bello. Esses são muito próximos mesmo. São memórias, diários e cartas.

Em um livro sobre a história da Guerra do Paraguai, que alguns combatentes escreveram, ou se reúnem os documentos, só se fala dos grandes fatos. Você não fala se choveu, se não choveu, se um soldado morreu, quem foi que brigou com não sei quem ou detalhes da batalha.

Os trechos do Conde d'Eu, por exemplo, são de um diário e cartas que ele escreveu para a mulher. E o Conde d'Eu uma coisa curiosa, que ele escreve esse diário carta para a princesa Isabel, para ela mandar para os familiares dele. Então, também tem uma coisa para os familiares conhecerem um pouco o Brasil.

Se o cara escreve a carta para mulher, é um tom. Se ele escreve uma carta para um amigo, é outro tom. O que varia muito é o gênero e isso é outra coisa que eu acho muito bonita literariamente falando.Como cada gênero literário carrega um conteúdo específico.

Esta é a primeira edição de uma trilogia que, no fim do lançamento, terá cerca de 1.500 páginas. Acha que, no fim das contas, pode-se dizer que a obra completa deve ser lida como um elogio da documentação, da preservação da memória?

Eu quero muito que sim. Acho que vou ficar 10 anos trabalhando nisso ou mais. No final das contas, se as pessoas lerem Retirada da Lagoa e mandarem os documentos dos seus antepassados para arquivos que já existem ou preservarem e criarem e divulgarem seus documentos, vai valer a pena. Porque você precisa da cultura do documento, preservá-lo e disponibilizá-lo para o público. O que você também pode fazer por conta própria. No caso do Francisco Barbosa (sargento brasileiro), o descendente dele, colocou na internet o diário dele. Então, tem muitas formas de você tornar público o documento. Hoje mais ainda.

Como foi a escolha de incluir mapas na abertura de alguns capítulos?

Quando eu fiquei lendo os fragmentos, eu queria muito me localizar. Eu procurava na internet e não encontrava nenhum mapa da Guerra do Paraguai. Tem um monte desses mapas antigos e tem alguns mapas muito esquemáticos, mas não tem um que você entenda melhor o todo. E eu queria muito essa informação, então eu encomendei para uma pessoa que faz mapas e para uma historiadora, tentar ir localizando os lugares, porque tem muitos lugares que só existiram enquanto os combatentes estavam lá. Eles davam os nomes que não permaneceram. Os lugares vão aparecendo conforme eles são mencionados. Eu queria que a gente conseguisse perceber que aquelas pessoas não estavam entendendo muita coisa no aspecto geral, mas elas sabem de onde elas vieram e para onde elas foram.

Os mapas acabam por mostrar como o conflito, embora tenha acontecido na fronteira e movimentado mais o Sul e Centro-Oeste do Brasil, foi uma guerra com impacto em todo o território. Houve gente de todas as regiões no conflito

A sensação que eu queria passar nesse episódio das partidas era essa mesma. Queria que o leitor entendesse como foi (para a guerra) o Brasil inteiro patriótica ou não patrioticamente, porque teve recrutamentos forçados também. Também quis mostrar, quando eles vão para o sul, como o movimento vai se espalhando. A gente tem uma noção muito esquemática do que foi a guerra.

Quando você vê, passou aquele rio, aquele riacho estava cheio, aí choveu, não pode andar, enfim, é uma coisa que você vai se ambientando. Quando aconteceram as enchentes recentes no Rio Grande Sul, eu falei: ‘nossa, Isso tudo é lugar da guerra. Tem gente que mora lá agora que deve ser descendente das pessoas que foram lutar’.


Quando serão lançados os próximos volumes?

Eu quero muito que o segundo saia no final do ano. O primeiro e o segundo livros estavam prontos em 2023, mas apareceu uma coleção com três mil livros sobre a Guerra do Paraguai. Todos de um colecionador que juntou esses livros por toda a vida. Desses livros eu peguei 30 e então os li, selecionei fragmentos e tive que refazer o primeiro volume e agora eu estou refazendo o segundo volume. Espero que seja publicado em outubro ou novembro.

Para encerrarmos, o que o leitor pode esperar dos próximos volumes?

Estou um pouco aflita, já estou fazendo e depois eu vou reler algumas vezes. São muitos combates, muita guerra e muita morte. Eles falam muito tanto sobre morrer de doença como morrer na guerra, como um mata o outro, às vezes, porque houve uma confusão, uma briga.

Nos próximos livros há vários relatos assim: 'vimos três cadáveres passando pelo rio hoje. Hoje passou um cadáver fresco. Depois da guerra ficaram 1.200 cadáveres de paraguaios no chão'. É repetitivo. Também nesse segundo volume não tem marchas e não tem a vida no acampamento, as coisas são muito mais tensas.

Sobre a autora

Nascida em São Paulo, em 1961, Beatriz Bracher é formada em Letras e é uma das fundadoras da Editora 34. A romancista recebeu o Prêmio Rio de Literatura e o Prêmio São Paulo de Literatura pelo livro “Anatomia do paraíso” (2015). Seu livro “Garimpo” (2013) venceu o Prêmio APCA na categoria Contos/Crônicas e recebeu menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas, de Cuba. Além dos livros, Bracher escreveu o roteiro dos filmes “Os inquilinos” (2009) e “O abismo prateado “(2011), este último em parceria com Karim Aïnouz

Reprodução

“Guerra — I - Ofensiva paraguaia e reação aliada novembro de 1864 a março de 1866”
• De Beatriz Bracher
• Editora 34
• 536 páginas
• R$ 119,90

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