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Uma viagem à língua portuguesa na Flip

Autor de "Latim em pó" e "Na ponta da língua", professor e tradutor Caetano W. Galindo está confirmado na programação oficial da 23ª edição da festa de Paraty

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Ele escreve para você. Mas não quer ditar regras. Vai, na base da conversa, te convencer que a língua que nós falamos está ensopada de história. Origens e extensões das palavras norteiam “Na ponta da língua, o nosso português da cabeça aos pés”, de Caetano W. Galindo. Depois do sucesso de “Latim em pó” (lançado em 2023 e com oito reimpressões até agora), o professor, tradutor e escritor promove um “percurso pelo corpo da língua brasileira” em outro livro envolvente, engenhoso e (por que não?) divertido sobre as raízes de nosso idioma.

Galindo conversará sobre os dois trabalhos e outros lançamentos na programação da 23ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), de 30 de julho a 3 de agosto, na cidade histórica do Rio de Janeiro. “Será minha primeira vez na Flip, nunca fui nem como espectador”, revela o escritor de 51 anos, nascido na mesma cidade com nome de origem tupi do autor homenageado, o poeta Paulo Leminski. “O significado da etimologia de Curitiba é controverso: a história oficial garante que quer dizer ‘muito pinhão’, mas muita gente acredita que o significado mais provável seja ‘muito porco’ e eu acho muito sensacional que a história do nome da ‘tal cidade europeia’, uma das três capitais brasileiras com nomes indígenas (Manaus e Maceió são as outras duas) seja um white washing”, pontua o curitibano ao Estado de Minas.

“Em seus livros, Galindo conta a história da língua portuguesa como nós falamos hoje, e como falamos com seus desvios e meandros: a origem no latim, o caminho que fez durante o colonialismo, as caudalosas contribuições africanas e indígenas e cada caquinho que foi se pregando num corpo sempre meio indefinido para criar esse todo orgânico e mutante, rico e vivo”, define ao Pensar a curadora da Flip, Ana Lima Cecilio, ao comentar a escolha de Caetano Galindo para a programação oficial. “Com sua inteligência alegre, sua erudição fresca, ele prova a cada linha que o estudo, a história e a literatura não vieram ao mundo para humilhar ninguém. Galindo escreve ensaios como quem passeia, e no caminho ensina que aprender também é desaprender, abandonando preconceitos e a preguiça de investigar. Ele ensina que a língua é um vai e vem, uma dança, com direito à celebração da música, tão cara a nós brasileiros, e também à poesia, esse delírio da linguagem”, complementa Cecilio.

“Fico feliz com a ideia que (com a homenagem a Leminski), a Flip tenha olhado para fora do eixo Rio-São Paulo, que a lanterna tenha se voltado para cá no mesmo ano do centenário do (Dalton) Trevisan”, comenta Galindo. “Será uma oportunidade bacana para a cidade e para as pessoas verem o que acontece aqui. É bem verdade que eu gosto de citar um amigo que, assim que soube da escolha do Leminski, disse: ‘Que maravilha, agora o Brasil vai saber o inferno que é ser curitibano.’’’, revela. Leia, ao lado, a entrevista de Caetano W. Galindo ao Pensar sobre os três livros que lança em 2025: “Na ponta da língua”, “Ana Lívia e outras mulheres” (teatro) e “As cidades” (poesia).

Gostaria que você estabelecesse as conexões entre “Latim em pó” e “Na ponta da língua”. Onde eles se encontram e onde se separam?

Esse livro (“Na ponta da língua”) só existe por causa da boa acolhida do “Latim em pó”. Foi uma imensa surpresa perceber quanta gente estava interessada em questões que, para mim, eram fundamentais, mas imaginava que eram do domínio de meia dúzia de nerds da linguística histórica. De repente, a gente viu que dezenas de milhares de pessoas correram atrás. Isso me deu um ímpeto muito grande de pensar: ‘Olha, tem mais coisa por trás desse universo’. E, se as pessoas querem ler aquilo, dá uma vontade de conversar com esse público e ir mais longe.

Em termos de conteúdo, “Latim em pó” é uma história linear da língua portuguesa do Brasil. Em “Na ponta da língua”, o processo é ao contrário. A partir de um dado contemporâneo (as palavras que nomeiam as partes do corpo), a gente volta para trás e tenta encontrar a história dessas palavras, as curiosidades no trajeto de uma outra palavra, as relações com palavras de outras línguas.

Muitas vezes, o tom do livro parece o de uma conversa com o leitor. Como foi encontrar esse tom?

Eu sou professor. Essa explicação deveria ser suficiente e acho muito estranho que não seja. É que muitos professores, na hora de escrever, se investem de um tom que a gente chama de professoral e aí ficam sérios e tediosos. No entanto, eu sou professor de cuspe, gosto de falar com os alunos. E, quando você quer manter os alunos interessados num assunto (linguística histórica), que é minoritário hoje na área de Letras, você precisa segurá-los ali, tentar convencê-los de que aquilo é interessante. É a estratégia da conversa: ‘Vem cá, senta comigo, deixa eu te mostrar um negócio’. É o que de melhor a humanidade desenvolveu desde que as pessoas começaram a usar a linguagem. Por isso, acho que a linguagem do livro ficou mais amistosa e cordial (às vezes acho que até demais).

Quais autores brasileiros têm o idioma na ponta da língua?

Há várias respostas possíveis. A gente está acostumado a pensar nos grandes escritores como aqueles que impuseram a sua vontade artística ao idioma como um superpoder. Como Guimarães Rosa, um escritor que dá ordens à língua. Mas existe um outro tipo de escritor, efetivamente atento aos meandrinhos da língua que corre pela sociedade. É o escritor encantado com a língua como ela é. Aí a gente tem um outro campo dos mestres: esses são os escritores que têm a língua na ponta da língua. Ninguém no Brasil é mais assim do que Francisco Buarque de Hollanda. Ele (Chico Buarque), definitivamente, é o indivíduo que tem o dedinho no pulso da língua portuguesa: sabe fazer tudo com ela. Sabe ouvir a língua e sabe responder a ela. Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan também trabalharam muito desse jeito. Mais recentemente, Luis Fernando Verissimo, conhecedor absurdo da fala brasileira urbana contemporânea, e André Sant’Anna. E a gente não pode esquecer o ‘desgraçado’ que nunca dava ponto sem nó: Machado de Assis era extremamente atento a como se falava no Rio de Janeiro, as diferenças entre as falas das pessoas, ao registro da gíria de sua época. Era um escritor muito antenado.

A língua portuguesa, você afirma em “Latim em pó”, é resultado de uma trajetória “improvável e única”. O que tem sido mais marcante nessa trajetória no século 21 e quais devem ser as próximas etapas?

Bom, eu sempre digo que o primeiro mandamento da linguística histórica (e da história, na real) é “nunca faça previsões”. A gente pode ver algo de novo no século 21, em termos mundiais, que é a consolidação definitiva de uma posição de centralidade do brasil no universo da língua portuguesa. Numericamente, economicamente, politicamente, culturalmente nós já teríamos “direito” a essa posição há muito tempo. Mas o nosso próprio complexo de vira-lata dificultou esse processo. Hoje acho que ele está dado. E, mais ainda, nas próximas décadas o número de falantes de português no território africano deve explodir, enquanto que a população de Portugal já está diminuindo. Então me parece claro que a gente deve viver com certa dose de choro e ranger de dentes de parte de alguns conservadores e com uma redistribuição de forças e importâncias.


Internamente, acho que o mais interessante vai ser ver a “desestandardização” do português brasileiro, que nunca chegou de fato a ter um “centro”, nos modelos do processo de formação das línguas europeias, e que agora encara um mundo que favorece muito mais a diversidade, a pluralidade de centros de referência.

Você acaba de publicar, pela Cobogó, um texto para teatro, “Ana Lívia e outras mulheres”. Quais as diferenças para a escrita literária?

Eu já escrevi mais de um conto que se compõe apenas como diálogos. Então, nesse sentido, as possibilidades de “escrita” podem ser similares. O que muda mais, e é mais fascinante na escrita dramatúrgica, é que você, como escritor, não está preparando o produto final. Você está entregando um material que vai ser profundamente alterado durante os ensaios e que, mesmo que não seja, vai passar por outras mentes, outras criatividades e outras competências antes de finalmente chegar ao público: direção, atuação, luz, som, tudo muda o texto, e tudo contribui para que ele, apenas então, seja algo como algum grau de “resolução”. E isso é lindo. Esse “sentir-se parte”, participar.

E sobre o livro “As cidades”, lançado pela coleção Círculo de Poemas?

Decorre diretamente da exposição “Fala, falar, falares “que eu e a Daniela Thomas montamos para o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo. Quem entra na exposição já ouve, no elevador que dá acesso a ela, uma leitura desse texto, gravado por dezenas de falantes de cantos diferentes do Brasil, e reencontra o texto todo impresso numa parede da última sala. Ali ele representa um pouco esse mergulho na diversidade do Brasil, e na beleza daquelas palavras. No livro, a lista de cidades (editada a partir da lista oficial do IBGE, que conta com 5571 municípios) se transforma em uma série de “poemas alfabéticos”, em que o som das palavras sugere a viagem de Norte a Sul, de A a Z, de Abre Campo a Zortéa.

Você se permite, em “Latim em pó”, iniciar um parágrafo com um pronome átono. Em “Na ponta da língua”, você cita o “o ogro conservador” que há dentro de você. Quando este ogro mais se manifesta?

Ah, diante do relaxo, do descaso, da leviandade que a gente encontra muitas vezes na imprensa, na comunicação escrita em geral. Diante de modismos banais, de construções estrangeirizadas desnecessárias. Mas especialmente diante de tudo que seja pretensioso, que queira se dar ares. Aí é que me incomoda. Ontem ouvi uma pessoa agradecer a “pacienciosidade” com que tinha sido tratada. Isso eu acho até divertido, de tão sem noção. O que me dói é quando a pessoa se acha superior por “possuir” um livro em vez de “ter”.

Em tempos que os humanos recorrem cada vez mais ao ChatGPT e outros modelos de inteligência artificial para escrever, como explicar o interesse pela história e pelas peculiaridades de nosso idioma?

Pela imbatível frase de Terêncio, dois mil anos atrás. Eu sou humano, e nada do que seja humano me é estranho. Poucas coisas são mais especialmente humanas, pessoais, instranferíveis e ao mesmo tempo coletivas do que a nossa língua. E acho que é justamente nesses tempos de automatização e artificialização da “inteligência” que esses elementos brilham mais forte.


“Na ponta da língua”
• De Caetano W. Galindo
• Companhia das Letras
• 272 páginas
• R$ 69,90

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