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A cegueira mental causada pela intolerância e pelo egoísmo

Livro "Ensaio sobre a cegueira", do português José Saramago, Nobel de Literatura, chega aos palcos com o Grupo Galpão

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“No meu romance 'Ensaio sobre a cegueira', tentei, recorrendo à alegoria, dizer ao leitor que a vida que vivemos não se rege pela racionalidade, que estamos usando a razão contra a razão, contra a própria vida. Tentei dizer que a razão não deve separar-se nunca do respeito humano, que a solidariedade não deve ser a exceção, mas a regra. Tentei dizer que a razão está a comportar-se como uma razão cega que não sabe aonde vai nem quer sabê-lo. Tentei dizer que ainda nos falta muito caminho para tentar chegar a ser autenticamente humanos e que não seja boa a direção em que vamos.”


Essa foi a resposta do escritor português José Saramago (1922-2010) ao ser questionado em entrevista, em 1996, sobre o sentido do seu livro mais popular, traduzido e visionário, que está reproduzida nos “Cadernos de “Lanzarote”, os diários que escreveu entre 1993 e 2009. Em outro desabafo logo após terminar o livro, ele foi ainda mais contundente: “O tempo da escrita, sobretudo nos últimos tempos, foi de sofrimento, de momentos em que me sentia incapaz de aguentar aquilo que estava a escrever. (…) A certa altura, cheguei a dizer: não sei se consigo sobreviver a este livro. Foi como se tivesse dentro de mim uma coisa feia, horrível, e tivesse que sacá-la. Mas não saiu, está no livro e está dentro de mim.”


Trinta anos após o lançamento de “Ensaio sobre a cegueira” – em 25 de outubro de 1995 – e 15 anos da morte de Saramago – em 18 de junho de 2010 –, o livro parece ainda mais atual diante do avanço da “cegueira” da intolerância, do autoritarismo e da irracionalidade estimulados pelas redes sociais. A epígrafe da obra já alerta: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Reparar é também consertar.


O que diria hoje o único escritor em língua portuguesa a receber, em 1998, o Nobel de Literatura? “Saramago não era um profeta, era um cidadão com capacidade de observar e ver como nos aproximamos do abismo. O sistema exclui milhões de pessoas, que não têm como consumir, e dessas pessoas, que nasceram para ter uma vida feliz, faz com que sejam dominadas pelo medo e pela falta de perspectivas para si e para seus descendentes”, disse Pilar del Rio, a viúva do escritor, em entrevista ao Pensar na passagem do centenário de Saramago, em 2022.


“Para piorar, usam as religiões, com elas controlam homens e mulheres, vítimas de insegurança e medo, pobres coitados que jamais sairão de seus guetos. Diante disso, José Saramago reagiu, dizendo que era preciso fortalecer a democracia e para isso era preciso mais educação, mais cultura, mais responsabilidade”, destacou Pilar também.

 
SEM RUMO

“Ensaio sobre a cegueira”, levou quatro anos sofridos para ser escrito, desde que Saramago teve a ideia dessa poderosa metáfora. “E se todos ficássemos cegos?”, perguntou-se o escritor enquanto almoçava no restaurante Varina da Madragoa, em Lisboa, em 6 de setembro de 1991. Em seguida, respondeu a si mesmo. “Mas somos cegos, cegos que vendo não veem,” Esse foi o ponto de partida para uma dolorosa reflexão que o autor propôs a ele próprio e aos leitores que vai muito além da cegueira dos olhos, passa pela cegueira mental, moral e social diante do mundo mergulhado nas trevas da estupidez, do individualismo e da barbárie que ele constrói no livro.


O livro começa: “Estou cego”, grita um motorista que perde a visão subitamente ao volante enquanto aguarda o sinal verde. Uma cegueira branca inexplicável, “um mar de leite”. Ajudado por outro homem, o motorista é levado a um médico oftalmologista, que não sabe explicar a causa da cegueira. Mas logo o médico também fica cego, como o homem que havia ajudado o motorista e que havia acabado de furtar o carro dele, a primeira ironia de Saramago na obra.


Nesse ponto inicial da narrativa, a imaginação de José Saramago ficou travada e ele não conseguia levar o livro adiante, porque todos os personagens seriam cegos. “Houve pausas que simplesmente sentia que o caminho que levava não era o indicado. Por fim, um personagem se impôs com grande naturalidade: 'Tem de me levar também a mim, ceguei agora mesmo', disse a mulher do médico, subindo na ambulância que levaria seu marido. Um personagem continua a ver por ter sido capaz de compaixão. Nesse momento, o livro adquiriu forma e ritmo”, contou Saramago a Pilar, conforme ela revela em seu livro “A intuição da ilha – Os dias de Saramago em Lanzarote” (Companhia das Letras – 2022).


A mulher do médico, portanto, toma as rédeas da narrativa, é a única que não fica cega, mas finge-se de cega para ficar entre os que perderam a visão no manicômio para onde eles são levados pelo governo, alarmado diante do risco de contágio da cegueira. A partir daí, a transformação dessa mulher resiliente que assume o protagonismo entre os cegos é, talvez, a maior virtude de “Ensaio sobre a cegueira”.

 José Saramago
José Saramago Mauricio LIMA/afp


Dentro do manicômio, ela vai literalmente conduzir homens e mulheres levados de volta a um estágio ancestral de degradação e subsistência, entre abandono, lixo e miséria. E ainda submetidos à crueldade sádica de outro grupo de cegos que passa a controlar a comida entregue pelos guardas. A mulher do médico, então, bestificada, terá de tomar uma atitude drástica, com uma tesoura, para acabar com a monstruosidade instalada.

Pilar conta que o sofrimento de Saramago foi tanto que ele não conseguiu reler o episódio em que o grupo de cegos dominantes obriga as mulheres igualmente cegas a ser estupradas por eles em troca de comida. Quando terminou o livro, o escritor anotou em seus “Cadernos de Lanzarote”: “Lutei, lutei muito, só eu sei quanto, contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que toda a hora se me iam atravessando na história e me paralisavam. Como se isso não fosse o bastante, desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, já não terei de sofrer mais.”

 
SEM NOMES


Outra virtude de “Ensaio sobre a cegueira” é a ousadia de Saramago ao criar uma narrativa na qual nenhum personagem tem nome e que rendeu ao escritor muitas dificuldades para desenvolver o livro. “Decidi que não haverá nomes próprios no 'Ensaio', ninguém se chamará Antonio ou Maria, Laura ou Francisco, Joaquim ou Joaquina. Estou consciente da enorme dificuldade que será conduzir uma narração sem a habitual, e até certo ponto inevitável, muleta dos nomes, mas justamente o que não quero é ter de levar pela mão essas sombras a que chamamos personagens, inventar-lhes vidas e preparar-lhes destino. Prefiro, desta vez, que o livro seja povoado por sombras de sombras, que o leitor não saiba nunca de quem se trata”, disse Saramago nos “Cadernos de Lanzarote” enquanto escrevia “Ensaio sobre a cegueira”.


Mas o sofrimento do escritor valeu a pena. Ele atingiu o seu objetivo reflexivo. O solidário que vira ladrão precisa da solidariedade alheia. O médico autossuficiente, que sempre cuida dos outros, também precisa de alguém para cuidar dele. A crítica ácida é explícita. É preciso fechar os olhos para ver, não com os olhos da cara, mas com os olhos da mente, enxergar a estupidez, o egoísmo e a ganância. Ali, confinados, os cegos precisam de tolerância e humildade, virtudes elementares, mas raras para voltar a ver o mundo com outros olhos.


LEGADO


“Ensaio sobre a cegueira” é, dessa forma, um dos principais legados de Saramago que segue reverberando pelo século 21. Mas não é tudo. Nas palavras de Pilar de Rio para o Pensar: “O principal legado de José Saramago para o mundo é a sua obra, aquela coleção de livros em que os leitores podem se sentir mais humanos, mais sólidos e também com mais sonhos. A obra de José Saramago acolhe os leitores, é reconfortante lê-la, é uma obra que respeita quem a lê porque é escrita com respeito. E está viva na vida cultural portuguesa, como em tantos outros lugares do mundo.” Pilar disse também: “José Saramago era um intelectual, um homem que pensava, por isso temia que acontecesse o que está acontecendo: pandemias incontroláveis, guerras, caos ambiental, cegueira moral e da razão.”


Esse caráter distópico/humanista apresentado em “Ensaio sobre a cegueira” também se manifesta em outras obras entre as mais de 30 que Saramago escreveu, como “Ensaio sobre a lucidez”, “A caverna”, “Caim”, “O homem duplicado” e Intermitências da morte”. E ainda na mais polêmica de todas, que, inclusive, após ser censurada pelo governo português, levou Saramago a deixar o seu próprio país e se mudar com Pilar de Rio para Lanzarote, nas Ilhas Canárias: “O evangelho segundo Jesus Cristo.” A obra humaniza Jesus como homem com qualidades e defeitos, sem divinização, o que pôs o escritor no alvo de católicos irados em sua terra natal.


“ALGUÉM QUE SE ATREVA”


“Ensaio sobre a cegueira” ganhou ao menos duas adaptações notáveis, uma para cinema e outra para teatro. A primeira foi levada às telas em 2008, dirigida pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles. O elenco contou com estrelas de Hollywood, como Juliane Moore (mulher do médico), Mark Ruffalo (o médico), Gael García Bernal e Danny Glover e ainda a brasileira Alice Braga. Fiel à obra original, o filme foi aprovado por Saramago. “Gostei muito, muito, me emocionei algumas vezes” disse o escritor português logo após a estreia. Ele informou ainda que não interferiu na produção do longa. “Tenho um princípio, de não interferir no trabalho dos outros. Não gosto de dar diretrizes. O diretor teria que se sentir totalmente à vontade e não seria eu a dizer o que ele devia ou não fazer”, afirmou Saramago em entrevista.


Nos “Cadernos de Lanzarote”, Saramago conta que uma vez recebeu sugestão para adaptar “Ensaio sobre a cegueira” para teatro. “Há no Porto um arquiteto que se chama João Campos. Dele me chegou a seguinte carta: 'Sabe o que pensei, José, que o Ensaio podia, e devia, ser transposto para o teatro. Acho mesmo que seria fundamental, e você dramaturgo com tão belas provas dadas poderia fazê-lo'”. Saramago então comentou: “Sofri demasiado para voltar àquele horror. Alguém que se atreva [a levar a peça para o teatro]. Eu não.”


Pois o Grupo Galpão se atreveu. Está em cartaz em Belo Horizonte até 1º de junho a peça “(Um) Ensaio sobre a cegueira”, dirigida por Rodrigo Portella e que tem o ator Eduardo Moreira como o médico. O tradicional grupo mineiro leva para o palco a essência da obra de Saramago, um mundo caótico em que a cegueira vai além dos olhos numa peça com final apoteótico.


Trecho do livro

“Enquanto lentamente avançava pela estreita coxia, a mulher do médico observava os movimentos daquele que não tardaria a matar, como o gozo o fazia inclinar a cabeça para trás, como já parecia estar a oferecer-lhe o pescoço. Devagar, a mulher do médico aproximou-se, rodeou a cama e foi colocar-se por trás dele. A cega continuava no seu trabalho. A mão levantou lentamente a tesoura, as lâminas um pouco separadas para penetrarem como dois punhais. Neste momento, o último, o cego pareceu dar por sua presença, mas só o orgasmo retirara-o do mundo das sensações, comuns, privara-o de reflexos. Não chegaria a gozar, pensou a mulher do médico, e fez descer violentamente o braço. A tesoura enterrou-se com toda a força na garganta do cego. (…) A cega gritava, não percebia o que tinha acontecido, mas gritava, este sangue viera donde, provavelmente, sem saber como, havia feito o que chegara a pensar, arrancar-lhe o pênis a dentada.”



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