'Sr. Loverman' reafirma talento de Bernardine Evaristo
Adaptado para a televisão pela BBC, romance da escritora britânica narra a vida dupla de um septuagenário que esconde um relacionamento amoroso de décadas
Barry Walker (Lennie James) e Morris De La Roux (Ariyon Bakare) na série da BBC que adaptou o romance de Bernardine Evaristo crédito: Reprodução
Matheus Lopes Quirino
Especial para o EM
O senhor Barrington Walker anda preocupado com a vida. No alto de seus 74 anos, ele está saturado com a rotina. Não aguenta os rompantes da esposa Carmel, com quem está há mais de cinco décadas, e o cúmulo do cotidiano gasto se dá aos finais de semana, quando comensais se sentam à mesa nos almoços de domingo para destilar fanatismo religioso. Mulheres mal-amadas, fundamentalistas, que usam a fé para expurgar seus julgamentos morais – sem imaginar os dilemas do anfitrião, com seus botões e uma vida dupla.
Mostrado em diversas faces, o preconceito é uma realidade trabalhada em “Sr. Loverman”, um dos mais notáveis trabalhos literários da romancista Bernardine Evaristo, que se tornou, inclusive, série da rede britânica BBC, exibida em outubro de 2024. Autora de “Garota, mulher, outras”, vencedor do Man Booker Prize de 2019, o tratado sobre a força das mulheres conquistou leitores nos quatro cantos do globo e apresentou sua autora ao leitorado brasileiro em 2020.
Naturalmente, expectativas são criadas e, para uma obra na rabeira de um sucesso, o desafio é ainda maior: “Loverman” chega como um ponto alto e luminoso de uma carreira já sólida ao tratar da vida íntima de um marido misterioso e de seu romance longevo mantido em segredo desde a juventude. Entra em jogo a vida dupla do homem, suas táticas, medos, falhas e êxitos.
Barry é um gentleman que encomenda ternos bem cortados para um alfaiate desde os anos 1960, quando chegou à Inglaterra para trabalhar em uma montadora. Intelectual, ágil e dono de uma lábia incomum, o personagem se tornou um self-made-man e fez fortuna à base da especulação imobiliária. Depois de tanto tempo, fatigado e levando a rotina com Morris, o amante, em paralelo ao casamento, a vida obriga Barry a sacodir a poeira.
É notável como os dilemas gays são tão bem compreendidos por mulheres da literatura. “Sr. Loverman” segue a linha de grandes clássicos do gênero, com a mesma potência do conto “Brokeback Mountain” de Edna Annie Proulx, adaptado ao cinema por Ang Lee. Aqui vale pontuar: se a narrativa curta de Proulx arrebatou leitores com doses cavalares de tensão homoerótica e sensualidade, base para o roteiro do longa, o romance de Evaristo, entretanto, aposta menos no erotismo e mais no dilema etário. A autora vai fundo na relação do casal protagonista, Barry e Morris, desde a adolescência na ilha caribenha de Antígua.
A tradução de Camila Von Holdefer segue uma linha da oralidade experimentada por Evaristo: da “vida real” no subúrbio londrino – onde gerações de imigrantes do caribe se estabeleceram. Aqui, as variações da fala compõem a complexidade das personagens: são provas da humanidade, que se revela em conversas frugais.
Holdefer abarca toda a versatilidade do dialeto trabalhado por Evaristo – uma das marcas de sua escrita. Como os fluxos de pensamento conduzidos por uma prosa ora incisiva, ora poética, a autora fragmenta momentos sublimes em períodos sem pontos, travessões e com margens autônomas.
As linhas seguem uma confluência literária que emula os dilemas psicológicos de personagens, suas questões ancestrais e dramas. É o caso dos capítulos em que Carmel, a esposa, fica em evidência: seus pensamentos estão altos, seus nervos, à flor da pele. Seus pecados são expostos em ritmo galopante rumo a um vertiginoso caminho de fé.
A vergonha, a crença e a origem estão em jogo neste romance conduzido pela trama da sexualidade dos septuagenários e pela força da paixão chocada desde a meninice dos homens. Evaristo mostra domínio da linguagem ao dar dignidade a personagens complexas, que poderiam fácil ser marginalizadas em um contexto de militância.
Publicada pela primeira vez em 2013, a trama mostra como o afeto (ou a falta dele) baliza as relações, os sonhos e as posturas de um núcleo íntimo, onde a questão racial está naturalmente incorporada e demarcada. Em “Sr. Loverman”, a família é o tema central, as raízes se esparramam além-mar.
Um spoiler: em determinado momento, Barry quebra “a quarta parede literária” ao se dirigir ao neto, Daniel, com um discurso sobre a importância da preservação da língua ancestral (de Antígua) enquanto se vive em inglês. O protagonista, ávido leitor de William Shakespeare, traz os dilemas de Lear e Macbeth para sua vida. Adora puxar angústias universais para si. Entende-se bem com os costumes britânicos. Faz um discurso e toma um gole de Coca Cola com doses de rum. Em seu caminho, convicções ancestrais, uma família intransigente e um amor tranquilo vão fazer Barry tirar o lenço de pano da lapela e desabotoar o colarinho. O rei está prestes a ficar nu.
"Sr. Loverman" Reproduçã0
“Sr. Loverman” • De Bernardine Evaristo • Tradução de Camile von Holdefer • Companhia das Letras • 328 páginas • R$ 89,90
Bernardine Evaristo Christophe ARCHAMBAULT / AFP
A palavra da autora
“Estou sempre interessada em escrever sobre os silêncios da nossa sociedade e cultura literária, e trazer à tona histórias e personagens que até agora foram pouco explorados. Em 2009, quando comecei a escrever este romance, sabia que a Geração Windrush sempre foi apresentada como completamente heterossexual, o que não pode ser uma representação precisa desse grupo demográfico. A ideia de um protagonista gay caribenho idoso parecia a maneira perfeita de resolver isso.”
Bernardine Evaristo Em entrevista à BBC, sobre a origem do romance “Mr. Loverman”