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Camus, o escritor e filósofo sedutor que se sentia um estrangeiro no mundo

A monumental biografia do autor dos clássicos "A peste", "O mito de Sísifo" e "O estrangeiro é, finalmente, lançada no Brasil

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Pacifista, anticolonialista, crítico de regimes autoritários, filiado ao partido comunista e depois descrente de qualquer ideologia, ateu convicto, defensor intransigente de suas opiniões e de justiça social, leitor voraz, prepotente e ao mesmo tempo inseguro, polemista, sedutor contumaz – casado, mas com várias amantes –, inconformado com o “absurdo” da condição humana....


Essas são definições atribuídas ao escritor, filósofo, ensaísta, dramaturgo, professor e jornalista franco-argelino Albert Camus (1913-1960) na monumental biografia “Camus: uma vida” (“Camus: une vie”), do jornalista e escritor francês Olivier Todd, com 882 páginas.


Lançada na França em 1996, a obra finalmente ganha tradução – de Monica Stahel – no Brasil pela editora Record. A vida do escritor é apresentada por Todd com base em vasta correspondência pessoal, gravações até então inéditas e inúmeras entrevistas com familiares, amigos e amigas e amantes.


Retrata a infância pobre, à beira da miséria, na Argélia, no Norte de África, colonizada pela França, a luta desde jovem contra a tuberculose que o atormentou a vida toda, a grande admiração recíproca e o rompimento com o casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. E ainda a glória com o Nobel de Literatura em 1957 e o processo de escrita de obras essenciais do século 20 – “O estrangeiro”, “A peste”, “O homem revoltado”, “A queda” e “O mito de Sísifo” – até a morte trágica com apenas 46 anos.


Camus nasceu em 7 de novembro de 1913, em Mondovi, na Argélia, então colônia francesa, filho de migrantes com raízes na França e na Espanha que foram tentar um futuro melhor no Norte da África no fim do século 19. Seu pai, Lucien Camus, era adegueiro de vinícola e sua mãe, Catherine Hélène, analfabeta, com saúde debilitada, trabalhava como faxineira.

Com um ano de idade, Camus viveu a primeira tragédia de sua vida. O pai morreu na famosa batalha de Marne, na vitória dos aliados – França e Inglaterra – sobre a Alemanha, em setembro de 1914, no início da Primeira Guerra Mundial.


Entre a pobreza e a beira da miséria, a mãe de Camus, com ele e o irmão mais velho, também chamado Lucien, e um tio dos meninos se mudou da área rural para uma casa no bairro popular de Belcourt, em Argel. Matriculado no liceu, Camus logo se destacou por sua inteligência e pelo interesse pela literatura. Descobriu na biblioteca clássicos como Julio Verne, Alexandre Dumas e Balzac, tornou-se “devorador” de literatura. Conseguiu uma bolsa que lhe abriu caminho para o ativismo político, o jornalismo, a filosofia, o teatro e a própria literatura, depois de passar por inúmeros empregos, como vendedor de acessórios de carros, corretagem marítima e escriturário.


Com 17 anos, Camus sofreu outro grande baque, foi diagnosticado com tuberculose. Olivier Todd conta: “Em dezembro de 1930, Camus não volta ao liceu. Febril, com falta de ar, ele escarra sangue. Não é uma pessoa forte. Os médicos diagnosticam tuberculose. Em Belcourt e em Bab el-Oued, bairros pobres [de Argel], a turbeculose parece fatal. Há desemprego, as pessoas nunca vão à França. Cair doente é cair num declive inevitável. Algumas classes sociais são mais vulneráveis do que outras.”


Na época, Camus resumiu seu estado de saúde após o surgimento da turberculose: “Excesso de esporte, cansaço. Excesso de exposição, hemoptises [expectoração de sangue pela tosse]”.

Camus posa para foto após ser informado de que receberia o Nobel de Literatura, em 1957
Camus posa para foto após ser informado de que receberia o Nobel de Literatura, em 1957 AFP/STRINGER

Absurdo da vida

“A tuberculose de Camus desenvolve sua sensibilidade, é uma doença metafísica”, avalia o biógrafo Olivier Todd. A vida de pobreza, a tuberculose intermitente, o inconformismo com o conturbado mundo entreguerras nas décadas de 1920 a 1940, a miséria e as injustiças na Argélia causadas pela opressão/repressão da colonização francesa, principalmente contra a população muçulmana – os “selvagens” [como os franceses definiam os não europeus) –, e a influência da amizade com filósofos ateístas e outros intelectuais, como o professor Jean Grenier, um dos seus gurus, vão moldando o cotidiano e a personalidade de Camus, que passa a questionar o sentido da vida ou a falta de sentido dela vida.

“Camus conheceu a pobreza; passou perto da morte; se Deus existe, é um Deus mau ou um Deus não onipotente. Ou Deus não existe e o mundo parece injusto”, diz Todd. O jovem Camus é um livre pensador diante dos paradoxos da existência. “Aceitar a vida como ela é? Estupidez. Há meio de fazer diferente? Aceitar a condição humana? Creio que, ao contrário, a revolta está na natureza humana. Aceitar ou revoltar-se é colocar-se diante da vida”. Esse dilema sobre o “absurdo” da vida passou a ser então uma companhia cada vez mais presente, tão logo ele foi aprofundando influências de filósofos de outros tempos, como Nietzsche e Schopenhauer, e amizades recentes com os escritores André Gide, André Malraux e Jean-Paul Sartre, por exemplo.

“No fundo dessa vida que nos seduz só há absurdo e mais absurdo”, afirmou. A filosofia do absurdo de Camus sugere que a existência humana não tem nenhum sentido e por isso cada pessoa deve encontrar o próprio significado da vida dentro dessa falta de sentido. Ou então: “O mundo é absurdo porque não se explica. Somos livre porque não somos nada”.

É o pensamento que permeia também o seu mais famoso ensaio, “O mito de Sísifo” . Como se sabe, na mitologia grega, Sísifo era um rei que traiu Zeus e após longa trama entre familiares e adversários, foi condenado a empurrar eternamente uma pedra montanha acima, que sempre volta e ele recomeça a empurrá-la. Diante da inevitabilidade do seu destino, Sísifo se conforma com ele.

O pequeno Albert camus com o irmão mais velho, lucien, na década de 1910
O pequeno Albert camus com o irmão mais velho, lucien, na década de 1910 arquivo a. camus/imec


Militância


Num mundo em ebulição que caminhava para a ascensão do nazifacismo, que tinha como grande contraponto o comunismo e a promessa de justiça social – desmascarado décadas depois – da recém-criada União Soviética e a desilusão com o capitalismo que concentrava riqueza e espalhava miséria mundo afora – como é hoje ainda –, Camus aderiu à militância política e se tornou professor de filosofia, mas procurando não misturar as duas atividades. Naquela época de deslumbramento com o comunismo, principalmente da esquerda, que, em geral, ainda não tinha conhecimento das atrocidades cometidas por Josef Stálin contra adversários e até aliados, Camus pensava: “O comunismo será, no limite, a fraternidade na liberdade e igualdade dos trabalhadores cheirando a cigarro na saída das fábricas de fumo, dos empregados mal remunerados”.

'Encantador e sedutor': Camus vivia cercado de mulheres, amigas ou amantes, mesmo casado com francine, com quem tinha um casal de gêmeos
"Encantador e sedutor": Camus vivia cercado de mulheres, amigas ou amantes, mesmo casado com francine, com quem tinha um casal de gêmeos christiane galindo


Sedutor

O escritor em gestação virou jornalista e editorialista combativo e se filiou, com ressalvas, ao Partido Comunista. Trabalhou em inúmeros jornais e publicações direcionadas. Pensador sagaz, mesmo com a saúde quase sempre debilitada, Camus, com o seu 1,84m de altura, olhos cinza-esverdeados e o indefectível cigarro no canto da boca – uma marca registrada dos galãs da época, principalmente no cinema – foi um implacável sedutor. “As moças não resistem a Camus, encantador e sedutor”, conta Todd.


Surgiu então a primeira grande paixão do escritor, a atriz boêmia Simone Hié, com quem se ele se casou em 1934. “Cínica, belo rosto oval, olhos castanhos de reflexos verdes, pernas longas, aquela criatura elegante, de olhar sensual”, descreve Todd, era libertária numa época na Argélia em que a “virgindade era um capital”. E viciada em morfina, um drama de que Camus compartilhou durante os oito anos de casamento, até uma traição mútua e conhecer sua esposa definitiva, Francine Faure.


Ainda casado com Simone Hié, Camus conheceu “a resplandecente Francine, nem volúvel nem libertina, próxima da perfeição”, explica Todd. Pianista clássica, com “olhos pretos, nariz de gato, maçãs do rosto altas, que lhe dão olhos tártaros, ela é encantadora”. Com ela, entre muitas amantes no meio do caminho, Camus teve o casal de gêmeos (Jean e Caherine) e viveu até a sua morte. Mas casado com Francine, Camus conheceu e se apaixonou pela atriz Maria Casarès, de quem foi amante também até o fim dos seus dias, o que gerou grande sofrimento em Francine, que tudo suportou, inclusive em meio a graves crises de depressão


“O estrangeiro”


No fim da década de 1930, Camus começou a escrever “A morte feliz”, que jamais publicou em vida, mas foi o embrião de sua obra mais emblemática, “O estrangeiro”, ápice literário da sua filosofia “absurdista” sobre um homem diante da falta de sentido da vida que, por isso mesmo, precisa buscar esse próprio sentido. É como um estrangeiro no mundo ou em sua própria existência. O protagonista é Meursault, que mata um árabe numa praia por motivo banal e vai a julgamento. Mas, para ele, tanto faz ser condenado ou não, porque a vida não tem sentido. É uma espécie de tratado sobre liberdade individual e também responsabilidade moral.


Meursault é indiferente até mesmo diante da morte da própria mãe. Assim começa “O estrangeiro”: “Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: 'Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames'. Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem”.


Em meio aos escritos literários e com a tuberculose sempre o atormentando, Camus tinha múltiplas atividades. Já tivera que abandonar a prática de esportes, chegara a ser goleiro de um time chamado Racing. Além do trabalho como jornalista em publicações de esquerda, arranjava tempo para escrever peças, outra grande paixão. Fundou a companhia Théâtre du Travail, trabalhou como diretor e ator. Montou peças importantes, como “Calígula” e “Revolta das Astúrias”.


Sartre

Diante da Guerra Civil Espanhola que culminou com a vitória do fascismo do general Franco e do estouro da Segunda Guerra Mundial, Camus rompeu com o Partido Comunista, em 1940, mudou para Paris e logo se viu integrado à Resistência Francesa, com destaque para a sua atuação no jornal Combat. Conheceu então o filósofo Jean-Paul Sartre e sua companheira, a também escritora Simone de Beauvoir. Tornou-se próximo de ambos, com admiração mútua, até um rompimento bombástico, principalmente por causa, segundo ele, da conivência dos conterrâneos intelectuais com os abusos cometidos pelos regimes totalitários, especialmente, a URSS, tolerados pela esquerda.


Ele escreveu: “A liberdade é poder defender o que não acho, até mesmo num mundo ou num regime que aprovo. É poder dar razão ao adversário”. A Segunda Guerra em curso atormentou profundamente Camus. Pacifista e crítico à imprensa francesa colonialista que insuflava o conflito, ele acreditava que a guerra poderia ter sido evitada. Rejeitou o determinismo histórico que apontava para uma conflagração inevitável, outra razão que contribuiu para a ruptura com Sartre e Beauvoir: os homens não acreditavam em Deus, mas divinizavam a história.


O escritor também se indispôs com os revolucionários argelinos, porque era contra a luta armada pela independência, defendia solução pacífica. Tornou-se assim persona non grata para franceses nativos ou nascidos na Argélia e os não franceses. Cético também quanto a ideologias, exprimiu publicamente suas convicções: “Deve se recusar todos os regimes europeus propostos, não apenas o nazismo, o fascismo, o franquismo, o capitalismo. O socialismo não é a devoção a um homem, a uma seita, a um catecismo, nem mesmo a uma classe, a um governo”.


Bomba atômica


“Há socialismo somente quando há esforço de pensamento e de ação para melhorar a condição material e moral de todos os membros da sociedade coletivizando a economia”, escreveu Camus também. Dessa forma, avesso aos regimes vigentes mundo afora e descrente em Deus, Camus ficou isolado e malvisto.


Em 8 de agosto de 1945, ele se expressou publicamente e com contundência contra o horror da bomba atômica jogada pelos EUA sobre Hiroshima. “A civilização mecânica acaba de atingir o seu último grande grau de selvageria. Será preciso escolher num futuro mais ou menos próximo entre o suicídio coletivo e a utilização inteligente das conquistas científicas” escreveu ele. Nessa época, era editor da Gallimard, uma das mais importantes editoras francesas. Aliás, Camus disse mais de uma vez que o suicídio era o único dilema filosófico, a decisão de viver ou acabar com a vida.

Mesmo com o êxito de “O estrangeiro”, o escritor seguiu morando de aluguel ou em quartos “emprestados” por amigos ou conhecidos. A literatura, o jornalismo e o teatro garantiam apenas uma parca situação financeira. “Camus pensa constantemente no preço do pão, da carne, dos ovos e do leite para europeus e árabes numa Argélia em crescente convulsão política por grupos separatistas, que buscavam a independência contra a forte repressão do governo francês”, explica o biógrafo Olivier Todd.

“A peste”


Em 1947, Camus, depois de vários anos escrevendo a obra, lançou “A peste”. No livro, a cidade de Orã, na Argélia, é assolada por uma peste transmitida por ratos. A peste tem analogia com a ocupação nazista, o terror e a morte. E e os ratos que a transmitem são os nazistas. Duzentos milhões de europeus foram prisioneiros dos nazistas, 200 mil oraneses são prisioneiros da peste, expõe o autor na obra, que tem como protagonista o médico Bernardo Rieux, que se depara com o negacionismo para combater a praga.


“A peste” acabou sendo um romance premonitório para o que ocorreria no planeta mais de sete décadas depois, a epidemia de Covid, em 2020/21, que vitimou milhões de pessoas e que teve também o negacionismo como principal obstáculo de enfrentamento. No romance, a aparição de ratos doentes ou mortos é considerada “pilhéria” de algum engraçadinho pelo porteiro e não tão preocupante pelo prefeito. “Os males do mundo vêm quase sempre da ignorância”, conclui o médico Rieux.


Com o novo romance, Camus passa da fase do absurdo para a fase da revolta. O mundo já não lhe parece mais absurdo, e sim terrível. “Aquele que lidou com a ideia de que tudo é permitido se Deus não existe, constata que não se pode suprimir absolutamente os juízos de valor. Isso nega o absurdo”.

"ALBERT CAMUS: UMA VIDA"
"ALBERT CAMUS: UMA VIDA" Reproduç]ao


“ALBERT CAMUS: UMA VIDA”
• De Olivier Todd
• Tradução de Monica Stahel
• 882 páginas
• Record
• R$ 131,90

FRASES

ilustração
ilustração Quinho

“Aceitar a vida como ela é? Estupidez. Há meio de fazer diferente? Aceitar a condição humana? Creio que, ao contrário, a revolta está na natureza humana. Aceitar ou revoltar-se é colocar-se diante da vida”


“A liberdade é poder defender o que não acho, até mesmo num mundo ou num regime que aprovo. É poder dar razão ao adversário”


“A civilização mecânica acaba de atingir o seu último grande grau de selvageria [bomba de Hiroshima]. Será preciso escolher num futuro mais ou menos próximo entre o suicídio coletivo e a utilização inteligente das conquistas científicas”


Albert Camus

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