Ágota Kristóf monta quebra-cabeça literário em 'Trilogia dos gêmeos'
Em três livros sequenciais, escritora suíça de origem húngara cria trama engenhosa que parte do realismo e tensiona os próprios pilares da narrativa
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Siga noMaria Fernanda Vomero
Especial para o EM
Os tempos são de guerra. Vindos da Cidade Grande, bombardeada noite e dia, os dois meninos gêmeos são deixados com a avó, uma estranha, em um vilarejo na fronteira. O pai está no front, a mãe não tem como protegê-los e alimentá-los. É provável que fiquem ali até o fim das hostilidades. “Mas eu vou botar os dois para trabalhar, nem precisa se preocupar”, diz a velha.
Assim começa “O Grande Caderno”, da escritora húngara Ágota Kristóf (1935-2011), título que compõe com “A prova” e “A terceira mentira” a chamada Trilogia dos Gêmeos. Os três volumes, escritos entre 1986 e 1991, são agora publicados pela Dublinense com tradução de Diego Grando.
Em novembro de 1956, Kristóf cruzou a fronteira de seu país com a Áustria, enquanto na Hungria tropas soviéticas reprimiam violentamente a insurreição popular contra o sistema político imposto ao país desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
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Com o marido e a filha bebê, ela foi acolhida na Suíça e alocada em uma cidadezinha da região francófona, onde passou a trabalhar numa fábrica de relógios. Nunca retornou à Hungria. Por isso, os livros da trilogia e as demais obras da autora foram escritos em francês, o idioma que lhe foi imposto “pelo destino, pelo acaso, pelas circunstâncias”, como ela mesma afirmou.
Detenho-me em alguns dados biográficos porque a escrita e a leitura, atividades vitais para Kristóf, acabaram sendo moldadas de modo inevitável pelo exílio ? e isso se reflete tanto nos elementos que permeiam as três narrativas sobre os gêmeos Claus e Lucas quanto no uso da linguagem. O estilo conciso, de frases curtas e diretas, pode até insinuar a falta do pleno domínio do idioma estrangeiro, mas Kristóf soube tirar proveito disso com excelência.
A escrita, por si só, produz forte impacto no leitor ? sobretudo no primeiro livro. A crueza daquilo que se narra se torna ainda mais evidente; não há escapatória nas entrelinhas. Embora o adjetivo “vertiginoso” já tenha sido usado à exaustão em orelhas e sinopses de obras contemporâneas, no caso da trilogia ele é mais que adequado: os livros de Ágota Kristóf provocam, sim, vertigem.
Os gêmeos não têm dificuldades em se adaptar à nova vida. O tempo e o lugar da narrativa são imprecisos, mas algumas pistas sugerem que se trata da Hungria no fim da Segunda Guerra, no período da ocupação alemã. Além de trabalharem para a avó, os gêmeos inventam exercícios para aprenderem a lidar com as adversidades: endurecimento do corpo e do espírito, mendicância, crueldade, teatro etc.
São amorais. Não vão à escola, pois não suportam estar separados. Ao realizar os estudos de forma autodidata, usam a Bíblia da avó, o dicionário do pai trazido na bagagem, compram papel, lápis e um grande caderno. Escrevem redações sobre o cotidiano ? e aquelas consideradas boas são transcritas no caderno.
“Para decidir se é bom ou fraco, temos uma regra muito simples: a redação deve ser verdadeira. Temos que escrever aquilo que é, aquilo que nós vemos, aquilo que nós ouvimos, aquilo que nós fazemos.” Assim se justificam tanto o título quanto a premissa do primeiro volume, “O Grande Caderno”. Explica-se também o fato de a narrativa ser conduzida por uma voz na primeira pessoa do plural, que logo atribuímos aos gêmeos. Aliás, ainda não sabemos seus nomes ? revelação que virá no segundo volume, junto com outras complicações narrativas.
Em “A prova”, a narração passa a ser em terceira pessoa. Novos personagens ganham importância no enredo. A guerra terminou, e outros estrangeiros ? os “libertadores”, referência aos soviéticos ? se instalaram no país, com anuência do governo local. O estilo enxuto permanece, embora haja mais diálogos e, assim, maior riqueza de detalhes. Sabemos que um dos gêmeos, já um rapaz, mantém a escrita diária dos cadernos. “Não, não é um livro. Eu só faço umas anotações”, conta, quando indagado. “No entanto, eu descarto muita coisa. Só mantenho o que é realmente necessário.”
A narrativa sofre um giro imprevisto no final, colocando à prova a confiança do leitor naquilo que leu até o momento. E é com essa perspectiva turva, movediça, que se inicia o terceiro livro, narrado por um dos irmãos, em primeira pessoa, e cuja trama surpreende ainda mais. A tensão entre “verdade” e “mentira” se intensifica. Um dos gêmeos, em determinado momento, afirma: “(...) tento escrever histórias verdadeiras, mas a certa altura a história se torna insuportável por sua própria verdade, então sou obrigado a mudá-la.” Em quem e no que acreditar? Daí a sensação de vertigem.
Impressionante e arrebatadora, a Trilogia dos Gêmeos resulta de um engenhoso trabalho de tessitura ficcional ao lidar com uma diversidade de elementos e recursos narrativos de forma inteligente e aparentemente simples. O próprio lugar do leitor é desestabilizado. Trata-se da história de dois irmãos afetados pela guerra e pelo exílio? Sim. Seria uma releitura criativa da figura do Doppelgänger? Talvez. Mas é, sobretudo, uma celebração ao desejo de narrar, à literatura e à sobrevivência na/com a escrita.
MARIA FERNANDA VOMERO é jornalista e doutora em Artes Cênicas (USP)
“Trilogia dos Gêmeos”
• De Ágota Kristóf
• Tradução de Diego Grando
• Editora Dublinense
“O Grande Caderno”
• 192 páginas
• R$ 69,90
“A prova”
• 192 páginas
• R$ 69,90
“A terceira mentira”
• 176 páginas
• R$ 69,90