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Livro 'Ainda estou aqui' vai além da morte de Rubens Paiva no filme

Filho do deputado assassinado pela ditadura, Marcelo Rubens Paiva conta na obra, que inspirou o filme que disputa o Oscar, como Eunice virou referência mundial

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Em ritmo de final de Copa do Mundo e de carnaval, o Brasil acompanha neste domingo a premiação do Oscar. O filme “Ainda estou aqui', de Walter Salles, estrelado por Fernanda Torres e Selton Mello, tem grandes chances de conquistar três inéditas estatuetas para o país como Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz. É baseado no livro homônimo e autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, de 65 anos, que fala de sua infância feliz numa família abastada em São Paulo e no Rio de Janeiro até o sequestro e o assassinato do seu pai, o engenheiro e deputado federal cassado Rubens Paiva, em janeiro de 1971.

Revela também as muitas lutas da sua mãe, Eunice Paiva, para obter o reconhecimento de que o marido havia sido morto pela ditadura militar (1964-1985) e para sustentar sozinha – a partir da tragédia familiar, já como advogada de causas diversas –, as quatro filhas e o filho. E ainda o ativismo de Eunice pela causa indígena, que a transformou em referência nacional e internacional, antes de ter suas memórias consumidas pelo Alzheimer.

Embora tenham o mesmo nome e saído das lembranças de Marcelo Rubens Paiva, o livro e o filme “Ainda estou aqui” têm caminhos distintos e por isso não devem ser comparados, como é comum nos casos de adaptações. O filme, consagrado no Brasil e mundo afora, é focado em Eunice, a partir da interpretação de Fernanda Torres que lhe garantiu o Globo de Ouro e pode valer a estatueta em Hollywood agora. Resume-se ao desaparecimento e à morte de Rubens Paiva e às consequências do caso sob o ponto de vista de Eunice.

Já o livro é mais abrangente, vai muito além do triste fim de Rubens Paiva e não segue ordem cronológica. Tem o ponto de vista de Marcelo, seu olhar sobre a sua infância e adolescência nas brincadeiras de rua e sobre a vida da mãe, com grande abordagem sobre como ela tinha uma relação de afeto diferente com os filhos, com muita responsabilidade, mas sem colo, beijos e abraços. O livro detalha, especialmente, a conquista, com dignidade e perseverança, da vitória de Eunice sobre o regime militar após a morte de Rubens Paiva, a trajetória pelos direitos humanos e como sofreu diariamente com o drama da perda de memória nos últimos anos de vida.

eleito deputado federal em 1962, rubens paiva teve o mandato cassado em 1964 após o golpe militar. em 20 de janeiro de 1971, foi sequestrado e torturado no doi-codi. O seu corpo nunca foi encontrado
Eleito deputado federal em 1962, rubens paiva teve o mandato cassado em 1964 após o golpe militar. em 20 de janeiro de 1971, foi sequestrado e torturado no doi-codi. O seu corpo nunca foi encontrado Arquivo Pessoal


O juiz perguntou: "Em que ano estamos?"

Logo no início de “Ainda estou aqui”, lançado em 2015, quando Eunice estava viva – ela morreu em 2018 – Marcelo lembra: “A memória é uma mágica não desvendada. Um truque de vida. Uma memória não se acumula sobre outro, mas ao lado. A memória recente não é resgatada antes da milésima. Elas se embaralham. Minha mãe, com Alzheimer, não se lembra do que comeu no café da manhã. Minha mãe, com Alzheimer, vê meu filho de um ano, que é a minha cara, e o reconhece. Não acha que sou eu, mas o chama de filho, de meu filhinho. (…) Pode ser ela a criança. Pode ser que, por ter tido quatro filhas, todos os bebês se tornem ela”.

 
Na reta final de sua vida, Eunice se perdia em suas reminiscências, não conseguia mais responder por seus atos e precisou ser interditada judicialmente pela família. Marcelo relata uma cena comovente passada na vara de família: “Estávamos no Fórum João Mendes, na 5ª Vara da Família, porque ela [Eunice] estava velha. Essa era a grande ironia. Especialista em interditar pais dos amigos, tida como advogada de confiança, estava para ser interditada às 14h35. Tinha setenta e sete anos. Nem tão velha assim. Interditou dramaticamente velhos conhecidos. Sabia passo a passo como fazê-lo”.

 “O juiz virou-se para minha mãe e perguntou de surpresa: ‘Em que ano estamos?’ Ela me olhou em desespero. Era aquela expressão, a nova expressão adquirida havia poucos anos, como se tentasse lembrar algo banal e não conseguisse, a data! que dia é hoje!, a data! Humilhada pelas conexões do cérebro”.

Marcelo lembra em tom poético: “Olhou para nós como se estivesse sendo arrastada pela correnteza para o vazio do oceano, iria se afogar, afogar-se no esquecimento. Assustada, surpresa por não se lembrar, coisa simples. Era um exercício sobre-humano remar de volta. Tinha que adivinhar a direção, defender-se e responder em que ano estávamos, em que mês estávamos, em que dia. O tempo não fazia mais sentido. Não conseguiria dizer com certeza o que tinha comido no café da manhã”.

rubens paiva com a família em casa, de onde foi levado por agentes do regime. Sua morte e seu desaparecimento só foram reconhecidos oficialmente em 1996
Rubens paiva com a família em casa, de onde foi levado por agentes do regime. Sua morte e seu desaparecimento só foram reconhecidos oficialmente em 1996 Editora Objetiva/Divulgacao

Apagamento de memória

Uma característica marcante do livro “Ainda estou aqui” – e que não passa despercebida por quem o lê com maior atenção – é exatamente a questão do esquecimento ou apagamento de memória de Eunice Paiva. É um duplo apagamento. O primeiro é o imposto de forma covarde e dolosa pelo regime militar ao tentar encobrir a atrocidade que cometeu com Rubens Paiva e outras incontáveis vítimas da repressão.

Ele foi torturado e morto no porão do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna, órgão subordinado ao Exército), em 20 e 21 de janeiro de 1971. Mas o regime forjou a abjeta versão de que ele foi resgatado por “subversivos” e fugiu. Tentou apagar o assassinato. Era estratégia recorrente dos militares para encobrir os crimes que cometeram, principalmente após o endurecimento com o Ato Institucional nº 5, em 1968.

O segundo apagamento de memória de Eunice Paiva, cruel e terrível também, é o próprio Alzheimer. Depois de lutar durante 25 anos, até 1996, quando obteve o atestado de óbito do marido, contra a tentativa de apagamento feita pelos militares sobre o destino dele, Eunice começou a perder a memória entre lampejos de lucidez, já acossada pela idade. O juiz da vara de família perguntou de novo: “Estamos aqui porque seus filhos pedem a sua interdição judicial e elegem o seu filho, Marcelo, como curador. A senhora está ciente disso?” Eunice respondeu: “É porque estou velha e preciso que cuidem de mim”.


Marcelo Rubens Paiva, então, reflete no livro: “Ela não disse seu prognóstico. Tentava, a todo custo, ser tratada não como uma doente, uma demente, mas como um ser igual a todo mundo, que, com a idade, é traído pela memória, fica velho, fica esquecido, fica esclerosado, velhinha”.

Isso quer dizer que Eunice estava sujeita ainda a um terceiro tipo sofrido de esquecimento: o da própria família, tornar-se uma idosa “encostada”. Mas esse ela também enfrentou. Em momentos de clara memória, questionou o filho e lembrou que ainda estava viva. “Seu orgulho era maior do que o seu esquecimento. Jamais sentiria pena de si mesma. Nem que sentíssemos pena dela. Jamais pediu ajuda”, diz Marcelo. O nome do livro, inclusive, é a afirmação definitiva de Eunice contra a tentativa de apagamento imposta pela ditadura, o apagamento irreversível pelo Alzheimer e o peso da velhice: “Ainda estou aqui”.


'A justiça existe para defender os pobres"

Outra característica que torna a leitura de “Ainda estou aqui” essencial é a impressionante trajetória de Eunice Paiva ao longo dos seus 89 anos. Dona de casa oprimida pelo machismo estrutural, considerado normal naquela época, ela se viu de repente sozinha, aos 42 anos, com quatro garotas e um menino para cuidar. Começou a trabalhar, se formou em direito e, mesmo após obter o reconhecimento da morte de Rubens pela ditadura, seguiu adiante como advogada e fluente em inglês e francês.

Marcelo conta: “Advogada de tudo: batida de carro, contratos, desentendimentos trabalhistas, problemas com a Receita. Foi minha revisora e contadora, além de advogada de todos os cinco filhos e de uma dezena de primos, amigos e até de amigos de primos e pais de amigos. Divorciou casais amigos, inventariou bens de famílias amigas, foi advogada de fábrica, de empresas e de índios, foi advogada do divórcio de Ronnie Von, que causava furor quando aparecia no escritório. Uma das poucas especialistas em direito indígena (…). Foi advogada de ilustres e desconhecidos, foi consultora do governo federal, do Banco Mundial, da ONU (...) Não ficou no balcão da solidão bebendo lágrimas de sal”. O escritor também cita declaração que ouviu da mãe naqueles tempos: “A Justiça existe para defender os mais pobres”.

Os "erros" de Rubens Paiva

Rubens Paiva foi eleito deputado federal por São Paulo pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), em 1962. Teve o mandato cassado e foi exilado em abril de 1964, logo após o golpe militar. Retornou clandestinamente ao Brasil para combater o novo regime “fascista e golpista”, como ele definiu em discurso gravado na Rádio Nacional e após criar a Rede da Legalidade. Mas foi ingênuo e acreditava que a ditadura não duraria tanto tempo, apesar de a situação sempre se agravar. Ao relembrar os meses que antecederam o sequestro do pai, Marcelo procura explicações para a insistência dele em não fugir para o exílio quando a ditadura piorou.

“Não sei o que passava pela cabeça do meu pai. Ele sabia que o cerco apertava. Apesar de não estar envolvido diretamente com a luta armada, escondia gente, dava dinheiro, ajudava os mais desesperados, trocava informes, viajava e fazia contatos com brasileiros no exílio, liderança do governo deposto, denunciava tortura, prisões arbitrárias, censura, tinha amigos correspondentes estrangeiros, como muitos da esquerda brasileira, ou democratas, ou enjoados com o terror praticado pela ditadura, ou traídos por ela”, afirma Marcelo em “Ainda estou aqui”.

“Ele andava tenso, queria dar um tempo, se dedicar mais à família; dizia isso aos amigos. Estava na cara que deveríamos ter partido para o exílio. Todos se foram, era a lógica para alguém visado. (…) Até partidos de esquerda contra a luta armada estavam sendo esmagados pela ditadura depois do AI-5. Por que ele atrasou tanto a nossa partida? Arrogância? Confiança? Deve ideológico?”, questiona.

Marcelo cita ainda o ressentimento de Eunice com a “teimosia” do marido: “Meu pai perdeu o timing. Onipotência e teimosia que minha mãe nunca perdoou. Queria lutar quixotescamente numa guerra já perdida. Arriscou a família, Tinha cinco crianças. E tenho certeza de que, destroçado pela tortura, deve ter pensado nisso. Sabendo que a minha mãe e a minha irmã Eliana estavam nas mesmas dependências do DOI-Codi em 21 de janeiro de 1971, de capuz, prontas para os torturadores caírem em cima, sabendo que minha mãe e irmão não tinham a menor ideia do que faziam ali, ele deve ter sofrido, ele, o irredutível inconformado, que não soube tomar as precauções devidas.”
E mais, avalia Marcelo: Inimaginável o seu sofrimento. Talvez a dor da tortura não chegasse aos pés da descoberta de que tomou decisões erradas, arriscou a vida da mulher e dos filhos, crianças ainda. Deve ter sido a sua derradeira tortura. (…) Dizem que foi torturado ao som de ‘Jesus Cristo’, de Roberto Carlos, música que a minha irmã Eliana lembra ter escutado quando estava lá.

Carta com telefone

Depois do “erro” de Rubens Paiva em não sair do Brasil, a gota d'água para a sua prisão foi uma carta de exilado do Chile endereçada a ele e apanhada pelos militares. “Minha mãe nunca perdoou a incrível falha de segurança, o amadorismo, a imprudência: [uma mulher] vir do Chile com uma carta escondida no avião mais queimado do país, com o telefone do marido escrito no envelope; prepotência e descuido das organizações de esquerda, que colocaram duas famílias com crianças no fogo cruzado”.

Rubens Paiva também foi relator da CPI que descobriu dinheiro dos EUA para deputados e outros golpistas que queriam derrubar o governo de João Goulart em 1963. Esse conjunto de ações foi fatal para o futuro de Rubens. “Meu pai foi preso em 1971. Muitos passaram a me evitar. Era filho de um terrorista que atrapalhava o desenvolvimento do país. (…) Todo mundo que era contra a ditadura era 'comunista'”, lembra Marcelo.

Em outro trecho do livro, o escritor desanca o regime militar e tira sua conclusão sobre aquele tempo: “Herança maldita do regime militar: inflação, crime organizado, obras faraônicas, ensino destruído. (…) O Brasil talvez tenha sido vítima de uma das maiores farsas da história: nunca correu risco de virar comunista. Muitos apoiaram como resultado da instabilidade institucional e desordem provocadas pelo próprio governo João Goulart. O Brasil vivia um conflito ideologicamente polarizado. Greve como a dos marinheiros, sublevação de tropas, comício com bandeiras do PCB e palavras de ordem radicais assustaram parte da sociedade. Quem deu o golpe de 64 pensou mesmo em nos salvar do comunismo?” E faz um lamento final sobre a impunidade até hoje vigente e o sumiço do corpo: “A morte do meu pai não tem fim”.


Trecho do livro


“Da embaixada [da Iugoslávia, onde estava refugiado], ele [Rubens Paiva] nos escreveu uma carta emocionada, que guardo até hoje, na minha pasta de documentos importantes. Nos chamava pelos apelidos que ele nos deu. E procurava explicar a conjuntura política para os filhos de três (Babiu) a nove anos (Veroca). Claro, no tom de desabafo. A carta vinha com uma ironia: o brasão da Câmara dos Deputados no papel timbrado:

'Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacazão e Babiu.

Recebi suas cartinhas, desenhos, etc., fiquei muito satisfeito de ver que os nenês não esqueceram o velho pai. Aqui estou fazendo bastante ginástica, fumando meus charutos e lendo meus jornais. É possível que o velho pai vá fazer uma viagenzinha para descansar e trabalhar um pouco. Vocês sabem que o velho pai não é mais deputado? E sabem por quê? É que no nosso país existe uma porção de gente muito rica que finge que não sabe que existe muita gente pobre, que não pode levar as crianças na escola, que não tem dinheiro para comer direito e às vezes quer trabalhar e não tem emprego. O papai sabia disso tudo e quando foi ser deputado começou a trabalhar para reformar o nosso país e melhorar a vida dessa gente pobre. Aí veio uma porção daqueles muito ricos, que tinham medo de que os outros pudessem melhorar de vida e começaram a dizer uma porção de mentiras. Disseram que nós queríamos roubar os que eles tinham: é mentira! Disseram que nós somos comunistas que queremos vender o Brasil: é mentira! Eles disseram tanta mentira que muita gente acreditou. Eles se juntaram – o nome deles é gorila – e fizeram essa confusão toda, prenderam muita gente, tiraram o papai e os amigos dele da Câmara e do governo e agora querem dividir tudo o que o nosso país tem de bom eles que já são muito ricos. Mas a maioria é de gente pobre, que não quer saber dos gorilas, e mais tarde vai mandar eles embora, e a gente volta para fazer um Brasil muito bonito e para todo mundo viver bem. Vocês vão ver que o papai tinha razão e vão ficar satisfeitos do que ele fez.'

O velho pai tinha trinta e cinco anos. Queria se justificar para os filhos que, na escola, nas ruas, podiam ouvir que o pai era comunista. Revelava um otimismo peculiar: todos ali imaginavam que o golpe não duraria muito. Pela lógica e roteiro pelos próprios golpistas, eles devolveriam o poder aos civis em 1966, numa eleição ganha por um JK ainda não cassado. Meu pai não imaginava que duraria vinte e um anos. E que só vinte e seis anos depois teríamos uma eleição direta para presidente. Que o terror seria uma rotina e prática de Estado a partir de 1968, com o AI-5. E que ele estaria sob tortura seis anos e meio depois. Morrendo. E que seu corpo desapareceria”.

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