"Keith Jarrett no Blue Note"

crédito: divulgação

João Pombo Barile

Especial para o EM

 

O escritor e crítico Silviano Santiago acaba de lançar “O grande relógio: A que hora o mundo recomeça” (Editora Nós). O projeto consiste numa retomada da leitura da obra de Machado de Assis em contraste com a escrita do romancista francês Marcel Proust. Trata-se, em termos gerais, de um retorno, sempre presente, aos textos que Silviano visita desde pelo menos a década de 1960. Como um retorno à sua própria fortuna crítica, Silviano também lança nova edição de “Keith Jarrett no Blue Note” (Companhia das Letras), livro de contos publicado pela primeira vez em 1996. De forma circular, como deve ser, voltamos às questões fundamentais à obra e à vida de Silviano, seja na investida crítica machadiana, seja em sua prosa de ficção, com a publicação simultânea desses dois livros. Confira, a seguir, resenhas dos dois livros do escritor nascido em Formiga, integrante da Academia Mineira de Letras, e entrevista com o autor. 

 

 

O ponteiro de Machado

 

Gabriel Martins da Silva

Especial para o EM

 

A incursão machadiana de Silviano Santiago começou ainda na década de 1960, quando morava e trabalhava nos Estados Unidos e preparava sua tese de doutorado em literatura francesa. Seus primeiros textos sobre Machado, ainda desse período, são tanto sobre “Dom Casmurro”, como é o caso de “Retórica da verossimilhança”, apresentado em 1969, publicado pela primeira vez em 1972 e posteriormente coligido em “Uma literatura nos trópicos” (1978); quanto sobre “Ressurreição”, o primeiro romance de Machado, em ensaio publicado como “Jano Janeiro”. Assim, Silviano desfruta de uma longa história com o bruxo do Cosme Velho, laço que alcançou sua realização apoteótica com o premiado romance “Machado”, de 2015, uma mistura de esboço biográfico e ensaio sobre os últimos anos de vida do escritor. Depois disso, ainda, escreveu “Fisiologia da composição”, ensaio dividido entre Machado de Assis e Graciliano Ramos, além, é claro, de revisitar criticamente sua própria produção ficcional, altamente ligada a esses dois autores. É nesse contexto que recebemos seu mais novo livro, o primeiro de uma série de três, que se debruça sobre a relação entre Machado de Assis e Marcel Proust, em chave comparativa entre “Dom Casmurro” e “Um amor de Swann”, aproximação sugerida já nos seus textos da década de 1960.


Como é de se imaginar, sua mais nova empreitada pretende não apenas oferecer uma nova leitura do consagrado escritor brasileiro, como também revisitar seus próprios escritos críticos sobre o autor, dando sobrevida aos seus ensaios e garantindo a continuidade de suas ideias.

 


Em “O grande relógio”, Silviano recorre às diferentes maneiras de ler a obra do Machado de Assis. Em relação às divergências universalizantes do autor, Silviano recupera e conjectura, a partir delas, o lastro histórico da guinada de Machado, apontando para uma espécie de intempestividade da escrita machadiana, que alcança sua realização mais bem acabada em “Memórias póstumas”.

 

Por outro lado, a leitura do crítico também está mergulhada em discussões ligadas à intertextualidade, método este que se tornou uma das marcas de seu trabalho, com um arsenal teórico ligado à desconstrução. Incrível como a obra de Machado é articulada, numa leitura propositalmente “anacronizante”, aos textos de autores europeus, como Proust, Diderot, Gide, Voltaire, recobrindo à formação francesa de Silviano e dando lastro à discussão propriamente geopolítica de seu livro, além de revisitar autores importantes da literatura brasileira, como Guimarães Rosa e Sousândrade, expoentes do que o autor chama de tradição “desafortunada”, justamente por desviarem do ufanismo nacionalista das literaturas do Novo Mundo.

 

Transformam-se, assim, todos esses autores em contemporâneos de Machado, dispostos a discutir, de igual para igual, com a figura maior de nossa literatura, transgredindo as fronteiras e os tempos históricos, fazendo, dessa maneira, com que Machado também se torne nosso contemporâneo.

 

“A que hora o mundo recomeça reabre a porta de vaivém. Por ela adentra anacronicamente o escritor do Novo Mundo, descendente de povo diaspórico africano escravizado. O ensaio não se refere ao milagre bíblico do Mar Vermelho, mas a pequenos detalhes artísticos, bem pão, pão, queijo, queijo, que, revelados com atrevimento crítico, exigem, para o genial Machado de Assis e para uma literatura nacional a que ele se filia, dita menor, a indiscutível dimensão universal.” (p. 61)

 

Não apenas escolhendo relações inusitadas entre autores cosmopolitas, mas recobrindo, de maneira ampla e complexa, toda a obra de Machado, lendo os textos tardios, como “Esaú e Jacó” (tema de “Fisiologia da composição”), os livros de maturidade mais célebres como “Dom Casmurro” e “Memórias póstumas de Brás Cubas”, indo até às crônicas de juventude e ao seu primeiro romance, “Ressurreição”. Embaralhando os tempos históricos, fazendo com que a leitura do texto literário se torne anacrônica e, portanto, contemporânea, parece ser uma possível leitura singular, dentro da fortuna crítica sobre Machado, que parece constar como o próprio método de Silviano.

 


GABRIEL MARTINS DA SILVA é sociólogo e doutorando
em letras pela PUC-Rio. Defendeu, em 2023,
o mestrado “Um crítico na província ultramarina:
Silviano Santiago” na PUC-Rio

 

 

"O grande relógio: A que hora o mundo recomeça"

"O grande relógio: A que hora o mundo recomeça"

divulgação

 

O grande relógio: A que hora o mundo recomeça”

De Silviano Santiago.

Editora Nós.

176 páginas.

R$ 65

 

 

Narrativas improvisadas

 

João Pombo Barile

Especial para o EM

 

Quando “Keith Jarrett no Blue Note” chegou às livrarias pela primeira vez, em outubro de 1996, o escritor e crítico Silviano Santiago acabara de fazer 60 anos. E se àquela altura, escritores como João Silvério Trevisan ou Caio Fernando Abreu já eram nomes conhecidos no país, a chamada literatura gay ou LGBTQIA+ como chamam agora, estava ainda longe de ter o respeito e reconhecimento merecidos. Naqueles distantes anos 1990, vivíamos os anos da peste da AIDS. E a doença aumentava ainda mais o preconceito com o gênero literário.


A publicação do livro de contos com clara temática gay, do consagrado crítico literário mineiro e autor do clássico “Uma literatura nos trópicos” e “Vale quanto pesa”, soou para os mais conservadores como uma espécie de provocação: por que um consagrado intelectual brasileiro continuava a perder seu precioso tempo escrevendo sobre o assunto? Destoando do seu jeito, sempre discreto e comedido, Silviano parecia não se importar muito com o efeito que o livro poderia causar em sua imagem pública. E disparou então numa entrevista para famoso jornal carioca na época do lançamento: “Escrevi estas histórias de erotismo e solidão para atingir o intestino do leitor”. A coletânea, com os cinco contos eróticos abertamente gays, fazia muita “gente boa”, inclusive de esquerda, torcer o nariz.

 


Não era a primeira vez que Silviano abordava o universo homossexual em sua ficção e incomodava os moralistas. O tema já tinha aparecido em “O banquete”, livro de contos publicado em 1970, quando ainda residia nos Estados Unidos. Quinze anos depois, em 1985, voltaria mais uma vez ao assunto. E criaria um de seus mais famosos personagens: Eduardo, conhecido como Stella Manhattan. O romance, publicado no final da ditadura, faria sucesso. E, claro, causaria também muita polêmica.

 

“Quando escrevi ‘Stella Manhatan’, queria mostrar os homossexuais como nova força política, que tinham chegado para questionar os padrões machistas da política partidária. Era uma crítica feita por meio de personagens que tinham uma linguagem pitoresca, de gueto nova-iorquino, com quem eu tinha convivido nos anos 1970, para contrastar com a postura habitual dos personagens de cunho político de alguns famosos romances brasileiros”, conta Silviano, que nunca se esqueceu do dia em que ouviu teve que ouvir, de um conhecido acadêmico carioca, numa roda de notáveis, uma maldosa pergunta para tentar constrangê-lo: “Stella Manhattan é mesmo um livro autobiográfico?”


No país que carrega, ainda hoje, o vergonhoso título de ser de um dos lugares que mais matam sua população LGBTQIA+ no planeta, a recepção ao livro de contos de Silviano foi sempre permeada de equívocos, sem nunca conseguirem entender que “Keith Jarrett no Blue Note” é completamente diferente de “Stella”. No livro, Silviano encarava um dos problemas centrais do mundo contemporâneo: a solidão urbana.

 


JOÃO POMBO BARILE é jornalista e redator
do Suplemento Literário de Minas Gerais

 

"Keith Jarrett no Blue Note"

"Keith Jarrett no Blue Note"

divulgação

 

“Keith Jarrett no Blue Note”

 

De Silviano Santiago.

Companhia das Letras

112 páginas

R$ 93

 

 

Duas perguntas para Silviano Santiago

 

“São seres humanos sorrateiros e frágeis,
obsessivos na satisfação do desejo sexual”

 

João Barile

Especial para o EM

 

 

 

A primeira edição de “Keith Jarrett no Blue Note” foi lançada há quase três décadas. Como você vê o livro hoje?


Ele é o único livro meu de narrativas improvisadas. Daí a homenagem ao pianista Keith Jarrett e aos conhecidos hits interpretados por ele no Blue Note. Cada conto foi escrito por sugestão de uma canção. Não me preocupei em criar personagens bem delineados e fortes como no romance “Stella Manhattan”. Quis focar homossexuais que, no período seguinte à crise da Aids, vivem um forte drama sentimental na solidão intermitente das cidades de bares fechados. Como meio de comunicação entre eles, valoriza o telefone fixo como se valoriza, hoje, o celular e o zap.


Nos contos, a ação humana não tem começo nem fim....


Exatamente. Por um momento flutua no ar, como nuvem inquietante. Com os bares fechados, vivem o medo e o acaso do sexo e do amor em encontros e desencontros ameaçadores que indiciam o caráter semiclandestino do grupo. O conjunto dos amigos compõe uma pequena multidão de anônimos. Formam uma família de profissionais da classe média, entrelaçados por sentimentos e emoções passageiros e fugidios, reconhecíveis como intensos e fortes. “Você me abre seus braços/ E a gente faz um país” (Marina Lima e Antonio Cicero, “Fullgás”). O amor existe? Sem identidade, são seres humanos sorrateiros e frágeis, obsessivos na satisfação do desejo sexual. O protagonista nunca se representa a si por um Eu autoafirmativo (a não ser em diálogo com um igual). Não tem a identidade definida por um Eu, responsável pela fala. O protagonista é nomeado pelo narrador que o trata por Você e que é, na verdade, ele próprio na condição de protagonista. O mundo fechado da clandestinidade: você sou eu, eu sou você. No jogo de empurrões entre narrador e protagonista, nenhum dos dois se constitui como o sujeito da fala. Incentivados pelo narrador e pelo possível leitor do conto a assumirem o Eu, a consciência de si, os protagonistas estão em ponto de bala para a terapia. Neuróticos ou psicóticos? Depende.