ARMANDO FREITAS FILHO
“Luta letrada”
Escrever é escalar
através do que vai surgindo
e crescendo pedra por pedra
encaram-se mirando cara a cara.
Encravados diante de nós
ásperos de vez em quando
aparafusados em linhas
letra por letra perto um do outro
com parentescos de vez em quando
nas quedas de braço
cada um com o seu truque.
O mais velho não enferrujou
muito pelo contrário
e o outro mais moço
tentou se muscular mais
para tentar o empate final.
***
“Maré ou marasmo”
Salve-me de mim
no mar, na maré de amanhã
onda por onda – crespas –
parecidas, mas no fundo
o sistema é outro
exige ao olhar – atenção –!
Se quiser descobrir, mergulhe
se não, veja como se fosse igual
e o dia pode não passar
que é o que eu quero
que não quebre nada
se equilibre no marasmo
na linha dessa ilusão.
E a noite da véspera
pior como costumam ser todas
abre uma nesga de nuvem
que permite uma gota de luar.
***
“Criação”
Se a corda for singular
basta uma, que a cor do acorde
da arte amanhece.
É a única coisa
possível naquela vida:
ela só vive por isso
não há virtuosismo
nenhum, somente
o som, a letra, a imagem
visceral, vibrante
de todo o ser reunido
na expressão indispensável.
***
“Agora”
Todo dia é do adeus.
Deus invisível, indiferente
escolhe quantos serão às cegas
e quando.
Eu como qualquer um
lá sei de mim e dos outros
e vou me engolindo
até a beira do abismo
do desespero — vou deslizando
por entre os seios de Nossa Senhora.
***
“Calendário”
Assistindo a morte às claras
programada, dia pós dia:
um a um sem defesa
esfarinhado na poeira da memória.
Esta casa não ri, fala pouco e bate portas
janelas, tranca com todas as chaves
ferrolhos, enquanto o jardim cresce
desarrumado cobrindo do teto ao socavão
as paredes de fora, sendo infiltradas
pelas ranhuras a princípio invisíveis
ou quase e vai no trem dos anos
aparentemente sem direção certa
estação imprevisível passando rente
ao túnel eterno que acompanha os trilhos
do destino que não acaba nunca
e continua como que passando veloz
no mesmo lugar, controverso
e a casa treme sempre caindo
por partes que vão envelhecendo
sem vontade nem remendos largando
tudo ao léu, a qualquer vento sem ordem
que arranca as telhas e quando não quebra
as goteiras vão chorando sem conserto
aqui, ali, acolá e as árvores, as plantas
ao derredor se curvam, os troncos gemem
com certeza de dor ou talvez não
pois é assim mesmo que a vegetação
vai tentando segurar a casa com suas raízes
ainda agarradas terra adentro
e o jardineiro que borda canteiros
no chão as cores da lembrança
das flores defloradas
que foram se desbotando mortas
debaixo da ventania e chuvarada
que ataca também o casebre
onde guarda seus instrumentos de serviço
muito amados, limpos, afiados de ferro e aço
silentes e sós, entre a barulhada
da água e do relâmpago, a folha ainda tímida
minúscula se fazendo ao ar livre
que começa a nascer no cabo da enxada.
***
“Dia a dia”
Um dia não são dias.
É único, singular.
Não é repetitivo, tem
o seu tempo diferente
sem hifens longe do tédio
disfarçado, já que em
cada degrau das suas
vinte e quatro horas brota
uma surpresa! Para o bem
para o mal, para talvez
de quando em quando reunidos
movimentam sua vida
sem que você saiba, ou sinta
até o risco da finitude.
Sobre o autor e o livro
Um dos maiores poetas brasileiros, o carioca Armando Freitas Filho (1940-2024) é autor de livros como “Palavra” (1963), “3x4” (1985), “Rol” (2016), “Arremate” (2020) e “Só prosa” (2022). A obra poética de Freitas Filho está reunida em “Máquina de escrever” (Nova Fronteira, 2003). “Respiro” chega às livrarias dois meses depois da morte do escritor, aos 84 anos, em 26 de setembro.
“Respiro”
De Armando Freitas Filho
Companhia das Letras
168 páginas
R$ 89,90