SOBRE O LUTO
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“Domingo, milhões de brasileiros vão repetir o mesmo ritual de todos os anos, que é comprar flores, velas, verter lágrimas contidas e promessas murmuradas. É o Dia de Finados, data de reflexão e saudade – ou, como se diz hoje, 'data de reconexão com a memória afetiva'. Sim, até o luto ganhou marketing. Há quem ainda vá ao cemitério por devoção. Outros, por costume. E há os que vão por foto – a selfie diante do túmulo, com legenda pronta 'saudades eternas'. O que antes era silêncio virou postagem. O que era saudade virou conteúdo. E o que era um gesto íntimo se transformou num ato de performance pública, cuidadosamente filtrado e iluminado. Mas sejamos justos, o Brasil sempre teve esse talento para misturar o sagrado e o espetáculo, o pranto e a comemoração. Somos o país onde o velório pode ter música, piada e cafezinho – e ainda assim ser sincero. É o chorar sem perder a ternura. Ainda assim, é impossível ignorar a nova face do luto. Os cemitérios estão ficando cada vez mais tecnológicos – com QR Codes nos jazigos, velas virtuais e plataformas que prometem 'memórias eternas em nuvem'. Antes, os mortos eram lembrados com flores. Agora, com login e senha. A eternidade virou um pacote digital, com mensalidade e atualização de software. No Sul, há quem solte balões biodegradáveis com sementes de ipê. Bonito. Poético. Mas há algo de estranho nesse desejo de 'compensar' a morte com um gesto ambiental. É como se a culpa de viver pesasse – e fosse preciso plantar uma árvore pra equilibrar o destino. De tanto querer ressignificar o luto, estamos quase transformando o cemitério em parque temático da transcendência. Claro, há uma beleza nisso tudo. Rituais são importantes, mudam com o tempo, ajudam a viver o que é insuportável. Mas o risco está em transformar o ato de lembrar em ato de consumo. Hoje, o luto se terceiriza e o florista entrega, o aplicativo acende a vela, o site publica a homenagem, o helicóptero espalha pétalas. A morte virou evento premium, com direito a pacote de lembranças digitais e assinatura de streaming da saudade. E, enquanto isso, o país que não cuida dos vivos segue reinventando maneiras de homenagear os mortos. Cemitérios com música, mas hospitais sem remédio. Memoriais digitais, mas escolas em ruína. QR Codes para quem partiu, e nenhum código moral pra quem governa. Talvez Finados ainda seja, sim, um dia de reflexão – mas não sobre a morte, e sim sobre como lidamos com a vida. Porque, no fim, entre a vela e o aplicativo, entre o choro e o post, entre o ipê plantado e o helicóptero de pétalas, o Brasil segue igual como nunca, emocionado, criativo, contraditório e profundamente hábil em transformar até a saudade em espetáculo.”
GREGÓRIO JOSÉ
Belo Horizonte