artigo

Nem anjos nem demônios

A impunidade da classe política, quando representada por corruptos, deve ser combatida, mas também se deve combater os exageros acusatórios

Publicidade
Carregando...

Por Renato Zupo, juiz de direito e escritor

Pessoas públicas devem explicitamente manter decoro e transparência, valendo-se de austeridade ao gastar dinheiro dos cofres governamentais e utilizar a parcela de poder que lhes é dada com moderação e prudência. E é claro que políticos desonestos podem ser cobrados por erros graves. Não se defende o indefensável. Por outro lado, se deve repudiar aos exageros cometidos contra a classe política ao longo de, pelo menos, duas décadas.


O Brasil, com três dos quatro últimos presidentes da República presos, preocupa muito em sua governabilidade e no respaldo ético indispensável à legitimidade de seus governantes. A ex-presidente Dilma Rousseff foi a única a escapar do cárcere, mas sofreu impeachment por crime de responsabilidade inexistente e pelo qual sequer foi denunciada.


Os exageros não se restringem à Brasília e existem em todos os rincões do país. Possuímos um arcabouço de leis que, a despeito de respaldar a transparência da coisa pública, torna impossível governar sem transgredir normas. Um governante impetuoso não consegue seguir à risca a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei das Inelegibilidades e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Não consegue empreender sem correr o risco de ser processado civil ou criminalmente.


A impunidade da classe política, quando representada por corruptos, deve ser combatida, mas também se deve combater os exageros acusatórios que decorram da inflexibilidade na interpretação de uma legislação que manieta o empreendedorismo estatal e põe na cadeia um político porque errou na emissão de nota fiscal em prestação de contas.


Não se deve judicializar a política, sobretudo criminalmente. Político desonesto é aquele que se locupleta do patrimônio público em proveito próprio – é este representante do povo que não merece estar no poder. Todo o resto é maleável, deve ser corrigido e punido administrativamente, sem qualquer necessidade de utilização do direito penal, que em países desenvolvidos é a “ultima ratio”, o último remédio a ser empregado, quando todas as outras ferramentas jurídicas e políticas falhem. Aqui, tudo se tenta resolver com inquéritos e denúncias criminais.


Sou magistrado criminal há mais de 25 anos, de maneira intermitente também juiz eleitoral. Antes de ser juiz, fui advogado criminalista e militei em proveito e contra políticos. Entendam: o político é o povo no poder, com seus defeitos e qualidades, fracassos e acertos, de tal modo que não se pode eviscerar o homem público sem considerar que representa o povo e vem... do povo!


Já participei de processos e presenciei acusações inusitadas contra autoridades, algumas redundando em condenações surreais. Vi, por exemplo, um delegado de trânsito do Norte mineiro ser processado porque não era habilitado. Entendeu-se que é absurdo uma autoridade de trânsito não possuir CNH, esquecendo-se que o delegado, como qualquer outro cidadão, tem o livre arbítrio para escolher conduzir, ou não, veículos automotores. Errado seria que dirigisse inabilitado.


Também vi um político que acumulava funções: era vice-prefeito e médico do município. Optou por uma só das remunerações e permaneceu nas duas funções, mas foi condenado e declarado inelegível, obrigado a devolver os proventos que recebeu por trabalho que efetivamente desempenhou.


E prefeitos que tentam a reeleição? São o tempo todo acusados de abuso de poder político quando se reelegem – arriscam sua liberdade quando tentam a reeleição. Ou se acaba com ela ou se flexibiliza a legislação eleitoral, porque é difícil governar e ser candidato ao mesmo tempo. Algo como pedir a um lobo que deixe de ser lobo dentro do galinheiro.


A profissão de político é, portanto, uma profissão de risco. Por qualquer má interpretação da lei, por qualquer equívoco, do político ou de seus advogados ou contadores, se vai para as manchetes dos noticiários como bandido e corrupto. Se criou o “crime de hermenêutica” no país – quando se interpreta a lei de maneira diversa que a dos tribunais, sobretudo do Tribunal de Contas, se arrisca ir para a cadeia por conta da mera interpretação divergente de normas.


E há as emergências, os casos fora da curva, os imprevistos que não estão descritos em manuais e legislações, e que devem ser tratados com a urgência devida pelo administrador público – que arrisca sua liberdade e seu bom nome por isso. Certa vez fortes e inesperadas chuvas puseram abaixo uma ponte indispensável à mobilidade urbana em uma determinada cidade histórica mineira. Seu prefeito, diante da calamidade, utilizou verba carimbada na reconstrução inadiável da ponte. Justificável, mas quase foi preso mesmo assim.


Os juristas brasileiros devem entender que subverter a vontade popular expressa no voto exige transgressão grave, crimes sérios, verdadeiros atos de nefanda corrupção, e não filigranas, imprecisões e problemas na interpretação e execução das leis. O direito penal não é para os anjos, dizia-me um amigo promotor, mas não se podem fabricar demônios. Se a legislação que trata da gestão pública e das eleições não se flexibilizar, e com ela o Poder Judiciário, logo não haverá cidadãos de bem, eficientes e bem realizados em suas profissões de origem, que queiram arriscar sua liberdade e reputação para ingressar na política. Aí sim, a governança será desempenhada exclusivamente por aventureiros inconsequentes, com enorme prejuízo para a população.

Acesse o Clube do Assinante

Clique aqui para finalizar a ativação.

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay