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Quando litigar vira negócio: a crise silenciosa no Judiciário

É uma exploração sistêmica, que sobrecarrega o Judiciário, gera gastos à máquina pública e desgasta todos os envolvidos

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Entre 2022 e 2024, mais de 700 mil ações judiciais foram ajuizadas contra instituições bancárias no Brasil. Cerca de 90% delas foram consideradas abusivas. Segundo dados da Febraban, os custos administrativos desses processos ultrapassaram R$ 800 milhões de prejuízo. Mas o que embasa essa avalanche de processos?


Por trás de milhares de ações judiciais, se esconde uma prática que transforma o Judiciário em campo de caça, onde não se busca a justiça, mas vantagem: a litigância abusiva. Ela tem nome, método e alvo. Uma pequena parcela de advogados, porém representativa em termos de volume de processos distribuídos, usam de ações judiciais para lucrar, muitas vezes, “criando” direitos com falsos argumentos.


Causídicos vão até o judiciário apresentando teses sem fundamento, fracionamento desnecessário de demandas, estratégias de procrastinação e, em muitos casos, fraudes processuais. Isso decorre da fragilidade do sistema em identificar os padrões abusivos das ações, mas, principalmente, da facilidade de acesso a dados pessoais sensíveis, especialmente de aposentados e beneficiários do INSS.


É a partir desses acessos não autorizados que tudo começa. Com o número do CPF em mãos, os advogados conseguem acessar o extrato completo do histórico bancário da pessoa. E ali enxergam uma oportunidade: se o cliente teve relação com 10, 20 ou até 50 instituições, surgem 10, 20 ou 50 alvos. Não importa se o problema apontado foi com apenas um banco.


A lógica abusiva é perversa: quanto mais processos, maior a chance de vitória, ainda que seja por exaustão da parte ré. É como um jogo de estatística. E é assim que os bancos continuam aparecendo nos relatórios do CNJ como os maiores litigantes do país.


Conforme dados atualizados até abril de 2025, nove das 20 instituições mais acionadas judicialmente são bancos. E essa liderança não decorre, necessariamente, de falhas na prestação de serviços, mas sim da posição que ocupam como principais contratantes da sociedade.


O número de CPFs vinculados a contratos bancários é grande, afinal, todo mundo tem uma conta em um ou mais bancos. Isso torna as instituições financeiras alvos certeiros para um modelo de atuação que se vale da litigância abusiva como fonte única e exclusiva de receita.


Há casos em que o advogado recebe uma procuração genérica de um cliente que menciona um problema com um determinado banco, e aproveita para ajuizar ações também contra outras dez instituições com as quais aquele CPF já teve algum vínculo. Muitas vezes, o cliente sequer sabe que as ações foram propostas. Quando percebe, já figura como autor em processos que nem pretendia iniciar.


Não se trata, portanto, de falha na prestação de serviços, mas sim na utilização predominante do judiciário como uma grande casa de apostas na distribuição do máximo de processos possíveis para potencializar eventual sucesso na busca pelo proveito econômico em detrimento do pseudodireito de terceiros.


Essa distorção afeta toda a cadeia: sobrecarrega o Judiciário, consome recursos de defesa de forma desproporcional e transforma o acesso à Justiça em um campo de batalha artificial. O uso legítimo da tutela jurisdicional é substituído por um sistema de apostas processuais, no qual se judicializa tudo o que pode, na esperança de que, em algum momento, a balança pese a favor da parte autora, ou que o custo da defesa leve o réu a aceitar acordos apenas para se livrar do passivo.


E o que acontece na prática? Os bancos ganham a maioria esmagadora dessas disputas. Isso porque as ações, muitas vezes, carecem de fundamento jurídico. São tentativas de pressão por volume. É uma exploração sistêmica, que sobrecarrega o Judiciário, gera gastos à máquina pública e desgasta todos os envolvidos. A litigância abusiva inverte o propósito da justiça: em vez de proteger o cidadão, usa o consumidor/autor como pretexto para atacar o sistema.


Isso não significa, evidentemente, que as instituições financeiras estejam imunes a falhas ou que não devam ser responsabilizadas quando descumprem obrigações. O ponto é outro. O que se denuncia aqui é o uso do Judiciário como uma espécie de loteria processual.


A Recomendação 159 do CNJ, criada para tratamento e prevenção da litigância abusiva, é um avanço, mas que ainda necessita de outras ferramentas para combater essa prática. É preciso ir além: tratar o vazamento de dados com rigor, exigir maior especificidade nas procurações judiciais, criar filtros mais eficazes para detectar padrões suspeitos e impedir que o volume de ações se transforme em ferramenta de chantagem processual.


A proteção do cidadão passa, também, pela proteção do sistema judicial. Quando o Judiciário vira um campo fértil para esse tipo de atuação, a credibilidade de todo o sistema é colocada em xeque e o direito constitucional daquele que, de fato, precisa acessar a justiça, é gravemente violado.


Litigar é direito. Mas litigar baseado em condutas abusivas, com base em vazamentos de dados, teses artificiais e alvos genéricos, é explorar uma fragilidade institucional. E isso precisa ser enfrentado com a mesma seriedade com que se combate atos ilícitos. Afinal, o acesso à Justiça precisa ser instrumento de cidadania e não de oportunismo.


WALTER MORAES
Advogado especialista em direito processual e liderança e gestão

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