Cuidado deficitário
Ouvir o grito dos necessitados e da criação de Deus é alimentar o sentido de cuidado e assumir o compromisso com a promoção do bem comum
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Siga noO ser humano nasce e se desenvolve cercado de cuidados, que lhe garantem sobrevivência, preservação, crescimento e amadurecimento. Embora essencial, a dimensão do cuidado é cada vez mais desconsiderada, embrutecendo corações, obscurecendo mentes. Ao invés do cuidado, prevalecem as indiferenças, o que representa uma negação à racionalidade. As consequências são terríveis, dolorosas, reveladas diariamente na depredação da casa comum, penalizando o meio ambiente, vitimando famílias com barbáries. Quando a indiferença impera, prevalece simplesmente a ambição desmedida por conquistas, elege-se o possuir como centralidade do próprio viver, submetendo-se ao poder do dinheiro. Instaura-se um terrível processo de guerra, incontrolável, penalizando todos os cidadãos, mesmo aqueles que possuem muito e, não raramente, desconhecem o sentido da própria existência.
As pessoas tornam-se incapacitadas para cuidar do semelhante quando estreitam suas ações na mediocridade, desrespeitando princípios éticos e morais. Investir na competência de ser cuidador da criação, o que contempla priorizar a dedicação ao semelhante, é um caminho imprescindível na superação de relativizações e “facilidades” que impõem ritmos predatórios à natureza e perda do compromisso social. Relativizações e “facilidades” que também são mobilizadas quando se quer promover manipulações de procedimentos, até mesmo de legislações, para beneficiar pequenos grupos de privilegiados. Sabe-se de engenhos sofisticados que não contemplam a ciência do cuidado. Prescindir do exercício do cuidado é incapacitar-se para enfrentar muitas crises, desde o âmbito familiar até os grandes desafios que ameaçam a humanidade – mudanças climáticas, impasses econômicos, migrações forçadas, carência alimentar. Apesar dos desenvolvimentos e avanços técnico-científicos, essas e tantas outras crises, que se interrelacionam, se intensificam pela ausência da cultura do cuidado, consolidando tempos sempre mais sombrios, com grandes sofrimentos.
Conta de modo determinante a aprendizagem e a prática da ciência do cuidado para eliminar do coração humano as estreitezas da mesquinhez, da cegueira e do egoísmo. Essas estreitezas distanciam a humanidade do compromisso solidário, da gentileza no tratamento do meio ambiente e, sobretudo, da dedicação a cada outro, que é irmão e irmã. Prioritário é trabalhar para que intensifique, na humanidade, os testemunhos de solidariedade, cuidados, caridade, para vencer as crescentes formas de nacionalismos, racismos, xenofobia e guerras que se multiplicam a cada dia. É simples, mas essencial e determinante, cultivar a disponibilidade para o exercício do cuidado, superando, assim, a incapacidade social para caminhar na paz. Há de se investir muito, em todos os âmbitos e direções, na cultura do cuidado, para emoldurar o desenvolvimento, o progresso científico e tecnológico com o sentido imprescindível de solidariedade que se revela no exercício da fraternidade.
Urgente é reforçar a antífona incontestável que lembra a importância do cuidado, pela iluminação da presença de Deus-criador que confia aos cuidados humanos o conjunto da criação, sublinhando o que deve ser a prioridade de cada pessoa: servir ao semelhante, todos irmãos e irmãs. Essencial é a inspiração que vem da vida e do ministério de Jesus de Nazaré. Sua exemplaridade é o modelo do cuidado ao oferecer-se na cruz, em sacrifício, para resgatar a humanidade de sua abominação, o pecado. No centro está a oferta do dom da vida de Cristo, contramão das atitudes daqueles que buscam acumular riquezas desconsiderando o bem do semelhante. Buscando aprender, sempre mais, a exercer o cuidado, torna-se importante sensibilizar-se a partir do ensinamento de Santo Ambrósio, no século IV, em Milão, quando diz que a natureza concedeu todas as coisas aos homens para uso comum, produzindo um direito comum para todos. Trata-se de referência a um princípio inegociável, com propriedade para corrigir os muitos descompassos na organização social e política.
Reconhecer que todos partilham direitos fundamentais é essencial para consolidar a cultura do cuidado e, assim, desenvolver imprescindível sensibilidade capaz de regular a convivência social. Nesse horizonte, deve-se promover a dignidade de cada pessoa, que não pode ser considerada um simples instrumento, valorizada a partir de sua utilidade no contexto social. Ao contrário, cada ser humano é protagonista da vida em sociedade, na família, nas instituições. Muitas são as dinâmicas que podem curar os corações do assoreamento da mina preciosa de onde brota a capacidade para cuidar do semelhante e do conjunto da criação. Exemplar e eficaz é o caminho da solidariedade, testemunhando concretamente o amor pelos irmãos e irmãs, acolhendo o princípio de que todos são responsáveis por todos.
A solidariedade ajuda a ver o semelhante como uma pessoa, não como um frio dado estatístico, ou um ser descartável quando não for mais útil. Ouvir o grito dos necessitados e da criação de Deus é alimentar o sentido de cuidado e assumir o compromisso com a promoção do bem comum. O caminho é cultivar a ternura e a compaixão – remédios para superar embrutecimentos e violências de todo tipo. Um investimento para enfrentar disputas e vinganças que precipitam sociedades em direção ao fracasso. Há de se prestar mais atenção, e comprometer-se com a cultura do cuidado, para ajudar a construir novas relações entre nações, pautadas pela fraternidade e pelo diálogo, respeito à dignidade de todos. A meta é grandiosa, o ponto de partida é a nobre gentileza e a ternura do cuidado.