Morte de menina indígena não pode ser apagada
A morte da menina indígena de origem venezuelana, vítima de complicações de uma gravidez associada a estupro, precisa ser encarada como grave falência do poder
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Siga noA cada tragédia que assola o mundo, muito se fala sobre a apatia da nossa sociedade. Em meio a tantas notícias ruins, estamos praticamente anestesiados diante dos acontecimentos e, nos desafia a tendência de continuar nossa rotina sem maiores reflexões sobre aquilo que embrulha o estômago de qualquer ser humano.
Essa indiferença, no entanto, parece ter escalas a depender da vítima de cada ocorrência. Crimes contra crianças, por exemplo, tendem a tocar o coração de cada um de uma maneira diferente, justamente pela jovialidade e fragilidade da pessoa envolvida. Quem não se lembra dos casos envolvendo Henry Borel, Isabella Nardoni e Bernardo Boldrini, só para citar três de grande repercussão, por exemplo?
Ainda assim, chama atenção como a sociedade trata com pesos diferentes as mortes de crianças não brancas. Aqui, não cabe qualquer comparação sobre o peso de cada vida ou sobre quem é mais ou menos importante. Não se trata de invalidar o óbito de pessoas brancas em condições tão absurdas, que inegavelmente merecem toda ênfase no meio midiático-social.
É que merece destaque e reflexão o nível diferente de comoção e de repercussão em relação à morte de Dorca Mata Rattia, menina indígena da etnia Warao, de apenas 12 anos, que perdeu a vida em Betim, Região Metropolitana de Belo Horizonte, em decorrência de complicações de uma gestação ocasionada por estupro. Em uma rápida pesquisa no Google, não se encontra qualquer registro de imagem de Dorca, mas ela simboliza o rosto de dois problemas coexistentes no Brasil: o abandono da população indígena e a violência sexual contra crianças e adolescentes.
O mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que ao menos 61% dos estupros contabilizados no país, no ano passado, foram cometidos contra menores de 14 anos. Como mostrou o Estado de Minas em reportagem publicada após a morte da criança Warao, o SUS realizou 245 partos de adolescentes com idades entre 12 e 14 anos, mesma faixa etária de Dorca, apenas neste ano e somente em Minas Gerais.
Além de ocorrerem em contexto de estupro de vulnerável, segundo o artigo 217-A do Código Penal Brasileiro, essas gestações implicam riscos à vida das meninas e dos fetos – a garota indígena, por exemplo, morreu após sofrer uma série de convulsões ligadas a uma pré-eclâmpsia, condição grave de hipertensão na gravidez.
Dorca também simboliza o total desamparo da população indígena no país. E, diante desse quadro, à exceção de casos de profunda vulnerabilidade, como aconteceu com a Terra Indígena Yanomami em 2023, dificilmente há grande repercussão na sociedade em relação a questões do tipo.
No caso dos Warao, como noticiado em reportagem da Agência Pública no ano passado, há um aspecto importante: a etnia, conhecida como o povo da canoa, sofre um novo processo de violência no Brasil, após recorrer a uma imigração forçada para deixar a Venezuela, diante do grave quadro de violação dos direitos humanos no país vizinho.
Se cabe à imprensa noticiar os crimes como eles realmente ocorreram, evidentemente com respeito aos preceitos jornalísticos pautados pela ética, é obrigação do poder público dar explicações e promover políticas para evitá-los, assim como é responsabilidade da população se manter vigilante para cobrar respostas das autoridades.
Casos como o de Dorca Mata Rattia não podem apenas entrar para balanços estatísticos. A morte da menina indígena de origem venezuelana precisa ser encarada como uma grave falência do poder público em proteger quem mais necessita, e nesse aspecto indígenas, imigrantes e crianças deveriam figurar na mais alta prioridade.