Violência de gênero não pode ser normalizada
Ao ganhar força, inclusive entre mulheres, o entendimento coletivo de que as leis não funcionam pode estimular a normalização da violência de gênero
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Siga noNo centro de São Paulo, Elaine Domenes de Castro, de 53 anos, caminhava na calçada em frente de casa quando foi encurralada na parede e morta com três tiros. Os filhos da vítima, ao assistirem ao assassinato filmado pelas câmeras de segurança há uma semana, reconheceram o autor: Rogério Gonçalves. Um ex-namorado que não concordava com o fim do relacionamento e não poderia se aproximar de Elaine, que tinha uma medida protetiva concedida pela Justiça após denunciar agressões que havia sofrido ao longo do namoro. O suspeito foi preso dois dias depois do crime.
Também detido, Vinicius Neres Ribeiro estava nas imediações da casa de uma ex-namorada, no Gama, nesta terça-feira, carregando uma mochila com facas, algemas, sacos de lixo, serra e uma mecha de cabelo da jovem, que tinha uma medida protetiva contra ele. Há nove anos, Vinicius matou Louise Ribeiro em um laboratório da Universidade de Brasília. A estudante, que também se recusava a se relacionar com o então colega de curso, foi asfixiada, enrolada em um colchão e queimada. Vinicius foi condenado a 23 anos de prisão em 2017. Cinco anos depois, entrou para o regime semiaberto. Na última sexta-feira, não voltou do trabalho externo e passou a ser procurado pela polícia. Aparentemente, planejava cometer mais um feminicídio.
Ambos os roteiros, repletos de atos de violência, compartilham outro fenômeno: reforçam a sensação de que as leis não funcionam quando as vítimas são mulheres. Denúncias oficiais, medidas protetivas e até condenações parecem não intimidar quem tem ódio do feminino. Não há erro na indignação. Mas especialistas alertam que, ao ganhar força, inclusive entre mulheres, esse entendimento coletivo de que as leis não funcionam pode estimular a normalização da violência de gênero e até mesmo desestimular denúncias.
Trata-se de um caminho tortuoso a ser tomado por um país que acumula recordes de agressões contra as mulheres. Pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) nesta segunda-feira revela uma alta histórica de episódios do tipo desde 2017, quando o levantamento começou a ser feito. O mais recente mostra que 37,5% de adolescentes e mulheres a partir dos 16 anos foram vítimas de algum tipo de violência nos últimos 12 meses — 8,6 pontos percentuais acima do resultado de 2023.
São cerca de 21,4 milhões de vítimas de agressões cometidas sem qualquer tipo de constrangimento — visto que 91,8% das entrevistadas relataram que os atos de violência tiveram testemunhas, como amigos, filhos e outros parentes. Apenas 24,5% procuraram uma delegacia e 47,4% se calaram — cenário que indica, no mínimo, uma falta de aproximação entre os órgãos de segurança e as vítimas. Entre também outras potenciais redes de apoio, como vizinhos, colegas de trabalho ou da igreja.
Elaine foi morta três dias antes de a Lei Maria da Penha completar 10 anos — legislação reconhecida internacionalmente pelo avanço no combate à violência de gênero —, em um momento em que o feminicida pode ser punido com o maior tempo de reclusão previsto no Código Penal brasileiro, conforme lei sancionada em outubro do ano passado. Ainda assim, os crimes continuam, evidenciando que o enfrentamento à violência de gênero não pode ser exclusivamente punitivo.
Medidas preventivas e de educação precisam fazer parte de uma política que tenha o propósito de combater causas estruturais do feminicídio e outras violências do tipo. E devem considerar sobretudo jovens e crianças — que presenciam as agressões, em 27% dos casos, segundo a pesquisa do FBSP, quando também não são alvo de covardes. As novas gerações brasileiras estão crescendo em um ambiente propício à normalização da violência contra a mulher. Não se quebra ciclos sem agir na base.