Encarnar a educação
Precisamos resgatar os espaços com terra, areia, água, árvores, os bichos soltos, os colegas de idades diferentes e, com eles, os problemas próprios de criança
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Siga noALELUIA HERINGER LISBOA
Doutora em educação (UFMG)
Quando o mundo virtual se abriu para nós, enxergamos suas promessas e seguimos o seu canto. Ludibriados, não tínhamos a noção que a moeda de troca seria algo fundante de nossa experiência humana: as relações corporificadas. Pouco sabíamos do que estávamos negociando. Hoje sabemos.
Pesquisas recentes oriundas dos mais diversos lugares, amostragem e categorias de análises, apontam de forma incisiva para o mesmo fato: o estrago que o uso abusivo das telas e, de forma mais específica, os smartphones causam nas crianças e jovens. O alerta chega com evidências robustas e incontestáveis. Gráficos demonstram uma disparada, principalmente, a partir de 2010, nos transtornos internalizantes, tais como depressão, ansiedade, ideação de morte, dentre outros. Em diversos países, os responsáveis pelos sistemas de educação, cientes do problema, agiram, emergencialmente, suspendendo o uso de celulares nas escolas. Os debates acaloraram entre os defensores do “não adianta proibir”, pois é preciso conscientizar e, do outro lado, os adeptos do “vamos restringir” enquanto conscientizamos.
Nesta reflexão, não interessa a interdição tardia dos celulares nas escolas, mas naquilo que precisamos restaurar. Encarnar a educação, aquela que acontece em uma escola ou em casa, passa pelo entendimento de que temos corpos, que a vida se dá entre pessoas e que nós nos constituímos nas relações corporificadas. Não nos satisfaz estar conectados; precisamos do olhar do outro. Sem esse chão que nos aponta quem somos e nos equilibra, ficamos suspensos, impermanentes. O mundo dos filtros e das cenas montadas para os selfies não nos dá porto seguro onde descansar. A vida que nossos jovens estão rejeitando aponta para um sentimento angustiante como se nunca chegassem em casa e estivessem sempre deslocados no próprio corpo. Adoecemos, pois não paramos.
Fundações suportam e erguem grandes construções. Não há como dispensá-las. Aquilo que estabiliza e organiza a vida se repete, assim como o olhar dos pais e as interações verbais que estabelecem. Os rituais também nos estabilizam, como bem lembra o filósofo coreano Byung-chul Han. Dos mais pomposos e raros, como um funeral ou um casamento, até os mais simples e diários, tais como o sentar à mesa para fazer uma refeição, a hora de dormir, a história contada ao pé da cama ou o dia de visitar os avós. Alguns objetos também nos servem como marcos e ficam por anos ou décadas em nossas casas. São usados, desgastam e ficam velhos com o passar do tempo. São pistas seguras no meio das tranqueiras inúteis que, no presente, nos dispersam.
Precisamos resgatar os espaços com terra, areia, água, árvores, os bichos soltos, os colegas de idades diferentes e, com eles, os problemas próprios de criança. Os jovens deveriam ser incentivados e apoiados nas iniciativas de teatro, dança, clubes de leitura, grêmio, culinária, esporte, iniciação científica, acampamentos, mutirões, voluntariado e tudo mais que os una em torno de pequenos ou grandes projetos e causas comunitárias. Não é o produto que interessa, mas o processo de estar vivo e junto. Ter amigos, mesmo que poucos e imperfeitos, exige um exercício enorme de aproximar, conversar, negociar e, muitas vezes, ser enquadrado de forma injusta. Todas essas atitudes acontecem e dependem do corpo, passam pelo corpo, podem produzir frustrações, alguns roxos e calos, mas, ao final, nos humanizam e nos preparam para a vida adulta.
É possível esquecer o que é um ser humano, algo bem retratado no distópico livro 1984, quando o personagem Winston diz que as pessoas de até duas gerações passadas lembravam do que era ser humano, pois sabiam o que era um abraço, uma lágrima. Os adultos de hoje, que viveram em um tempo analógico, de comunidades vivas, são aqueles que podem fazer algo contra o esquecimento e encarnar a educação.